sexta-feira, 5 de julho de 2013

MERSAULT EM ARGEL

A sensação mais imediata é de calor. Um calor pegajoso que se entranha através dos poros, amolecendo-nos os ossos. Um calor que turva a mente e domina a vontade, ameaçando tornar-nos lagos de suor. Acontece que não estamos fora desse écran que mostra desde as primeiras sequências o rigor do sol africano, a luz abrasadora que fere as pupilas, a influência do ambiente, que tão fundamental se tornou nas correntes litearárias realistas e naturalistas do séc. XIX. Não nos encontramos sentados na confortável poltrona de uma sala de cinema refrigerada, vendo O Estrangeiro, mas "dentro" do filme, sofrendo uma temperatura capaz de desfazer o esmalte dos dentes e de decompôr num segundo as vísceras de um cadáver. Pertencemos à história que nos é relatada e não somos sequer um extra, ou um figurante que assiste ao julgamento sentado no fundo da sala abanando-se com um leque, ou um passeante anónimo sufocado pela canícula, nem temos um pequeno papel de asilados no hospício de Marengo, a sessenta quilómetros de Argel. Tampouco somos Mersault, o protagonista, com quem é difícil qualquer identificação, talvez porque nos pareça demasiado estranho essa personagem que Visconti tomou de empréstimo a Albert Camus, que rapidamente mata um árabe sem que possa explicar os motivos que o levaram a disparar, para além de uma ofuscação momentânea, devida ao Sol muito forte, e que é julgado em tribunal, não tanto porque tenha tirado a vida a um jovem, que antes tinha atacado o seu amigo e brandido uma navalha, mas sim porque se mostra indiferente em relação à morte da sua mãe. Todavia, ainda que nós mesmos o critiquemos mais por essa indiferença do que pelo assassinato, o rosto que se reflecte no prato de latão, após longos meses de cárcere, mal barbeado e envelhecido, talvez já não seja o de Mersault mas o nosso, o de qualquer ser humano, a quem os acasos da vida, o deslumbramento que conduz paradoxalmente à cegueira, parece ter traçado de antemão um determinado e absurdo caminho que só poderá modificar se for capaz de mentir. Mas Mersault não sabe ou não pode: é incapaz de mentir e talvez desconheça que só pode salvar-se se fingir.

Visconti teve muito em conta, parece-me, o que escreveu o próprio Camus a propósito do seu livro, quando foi publicada a versão americana: "Dans notre société tout homme qui ne pleure pas à l'enterrement de sa mère risque d'être condamné à mort". Note-se que Camus não se refere ao que não sente verdadeiramente a morte da sua mãe, mas ao que não verte publicamente lágrimas, ainda que de crocodilo. Daqui decorre que a novela de Camus nos apresente uma meditação filosófica sobre os riscos que se correm ao dizer a verdade e como o facto de manifestar sem dissimulação os nossos sentimentos nos torna perigosamente distintos dos demais. O que parece condenar a sociedade da época - não nos esqueçamos que a accção da novela e do filme decorre em 1938 na Argel sob domínio colonial francês - é que não se respeitem os costumes, que vão desde não fumar nos velórios até abster-se de ir à praia ou ao cinema quando se está de luto, e ainda menos ter relações sexuais com uma amante ocasional, como parece ser ao princípio Marie Cardona, uma antiga companheira de trabalho de Mersault. Inclusivamente, a própria Marie é surpreendida pela atitude indiferente do seu amigo, quando, depois de observar a gravata e o fumo negro no seu fato, lhe pergunta por quam pôs luto. Alongo-me um pouco sobre estes aspectos, a fim de demonstrar a absoluta fidelidade, quase reverente, que Visconti observa em relação ao espírito e à letra da novela de Camus, fidelidade essa que me parece absolutamente essencial na construção da reflexão ético-moral que o filme encerra : somos ou não responsáveis pelos nossos semtimentos ? a indiferença pode corrigir-se ? existem receitas válidas contra a abulia ?. Essas perguntas surgem enquanto contemplamos o filme e continuam a martelar-nos o cérebro. Nem Camus nem Visconti nos respondem. Aliás, a missão da obra de arte não é a de oferecer respostas, mas a de lançar perguntas. Não responder, sugerir. Visconti utiliza o calor e a luz como uma sugestão - talvez seja o calor solar o responsável, já que nos obstinamos sempre em encontrar um culpado. Mersault pertence a uma estirpe de artistas das obras literárias finisseculares, caracterizados pela ataraxia, pela doença da vontade. Muito embora não seja um artista, mas apenas um empregado menor de uma empresa exportadora de Argel.
Segundo Herbert R. Lottman, biógrafo de Camus, a personagem de Mersault inspirou-se, em parte, na do pintor boémio e noctívago chamado Sauveur Galliero, a quem o escritor conheceu no final dos anos 30. Um dia, depois de saber que a sua mãe tinha falecido, encontrou-o ocasionalmente na esplanada de um bar e deu-lhe os pêsames. Galliero contou-lhe que depois do funeral foi ao cinema com uma amiga, uma mostra de indiferença filial que, segundo parece, surpreendeu Camus, se bem que antes desse encontro fortuito, em Dezembro de 1938, tenha escrito numa página do seu diário: "Aujourd'hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas. J'ai reçu un télégramme de l'asile..." (Esta história pode ser lida em "Albert Camus", de Herbert R. Lottman, Paris, Éditions du Seuil, 1978).

Marcello Mastroianni, guiado por Visconti, recria essa abulia através de gestos, de um modo indolente de fumar, da apatia com que olha o mundo, excepto, parece-me, no final quando os seus olhos contemplam as paredes da cela e confessa ao sacerdote que tem medo, ainda que, por causa desse medo, não aceite morrer acreditando em Deus. Assim, o diálogo mantido na cela com o sacerdote ,a negação dos auxílios espirituais, e inclusivamente a rejeição da presença e da companhia do padre, com o pretexto de que "para mim o tempo é ouro, não quero perdê-lo com Deus", não são exactamente pensamentos e actos de um obscuro empregado de escritório, mas antes de um porta-voz de Camus (e de Visconti), um autor que vê no absurdo da existência humana a origem da sua rebeldia. Daí que, para Camus, a característica principal do seu herói não seja a sua abulia, tão aparente (não lhe interessa, por exemplo, melhorar a sua condição, nem viajar para Paris, em aí se estabelecer para subir na firma, como lhe propõe o patrão), nem a sua insensibilidade (a morte da mãe não o afecta), nem sequer a sua incapacidade de amar (admite que não ama Marie). mas antes ser um homem obcecado com a verdade, por isso respondendo sempre com a verdade às perguntas que lhe são feitas, quer se trate de responder a Marie quando ela quer saber se a ama ("as palavras não significam nada, mas suponho que não"), como quando lhe perguntam que idade tinha a mãe ("uns sessenta"). Essa fidelidade à verdade faz com que responda com toda a verdade e nada mais que a verdade a tudo quanto lhe perguntam em tribunal. Assim , por exemplo, dirá que ele e a mãe não tinham nada a dizer-se e que foi o Sol que o fez disparar contra o árabe, sem procurar subterfúgios, nem álibis. Do mesmo, Marie dirá tudo quanto fizeram nesse dia, incluindo deitarem-se, circunstâncias que prejudicam o acusado e lhe ditam a sorte.

Comecei por falar da sensação de calor e da luz ofuscante. Gostaria de finalizar com uma consideração sobre os sons, que me parecem fundamentais. Visconti oferece-nos através da percepção acústica os sinais de identificação do lugar, a mistura de referentes que, não obstante, configuram dois âmbitos separados, o árabe e o francês colonial.  Os ruídos externos, que invadem o pequeno e destroçado apartamento de Mersault, e depois a cela que ocupa na prisão, aludem ao transcurso da normalidade, a vida de fora, um mundo distinto, talvez pior, do que o mundo interior em que está instalado o protagonista. Até ao apartamento chegam os ruídos do domingos dos outros, o chamamento do muezzin, os lamentos do cão de Salamano, os gritos da mulher árabe a quem Raymond Sintes quer castigar pelo seu comportamento, e que busca cumplicidade de Mersault, o choro de Salameno pela perda do cão...Os ruídos que chegam até ao estrangeiro que espera a morte na sua cela são muito mais significantes: Mersault passa as noites em vigília, pendente de qualquer ruído que chegue do exterior, porque esse será o anúncio de quem vêm buscá-lo, e ele não quer ser colhido de surpresa. Nesse vigiar constante, que vislumbramos na cara de Mastroianni, no gesto de precipitar-se para a porta da cela, encerra-se o manifesto de Visconti contra a pena de morte. Um tema que a Camus interessava menos que o colocar em evidência o absurdo da existência de quem se sabe "indiferentemente diferente". Precisamente esse aspecto, fundamental na novela, levou Camus a querer intitulá-la "L'Indifférent",em vez de "L'Étranger". Se depois se decidiu por este último foi porque, provavelmente, redunda na dimensão simbólica do texto, um simbolismo mantido no filme e que, num momento-chave, tem também a ver com a percepção auditiva: recordemos que os disparos contra o jovem árabe rompem o "extraordinário silêncio" e "destróem o equilíbrio do dia". Do mesmo modo que a conversa entre Marie e Mersault, através das grades, entre os gritos dos outros presos e dos seus familiares, oferece a mais peremptória imagem da impossibilidade da comunicação e da solidão mais aterradora.

Arnaldo

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