Noite solitária em casa, comando
na mão e toca a tropeçar sobre as possibilidades do cabo, estupidez, vazio,
absurdo. De repente imagens familiares de Londres, jovens bêbados enrolados em
tiras de cabedal e tachas distribuídas ao acaso destroem um Rolls Royce com um
pé de cabra só pelo prazer de o fazer enquanto gritam o nome de uma amiga que
mora para aqueles lados aos berros. John e Sidney. Demasiado familiar, volto
atrás, confirmo. Volto a SID AND NANCY realizado por Alex Cox, um documento
importante de 1986 que pretende ilustrar os últimos anos do mítico baixo dos
“Sex Pistols”, a sua ruptura com a banda na tour aos Estados Unidos e a relação
tormentosa e decadente com a sua companheira Nancy. Havia fotografias dele e dos
discos nos cadernos e na cabeça da maioria dos adolescentes do meu tempo, era
um dos primeiros ícones de uma geração que adorava aquela postura desafiante,
degradada e indiferente de fazer música e de estar na vida. O Punk enquanto
atitude filosófica e comportamental morria com o seu melhor acabado ícone em
1979 ao fim de uma jornada de decadência e adição inconsequente. No vazio do
maior dos vazios os jovens rejeitavam a vida, a sociedade e tudo o que ela
tinha (?) para lhes oferecer. Fechavam-se em buracos escuros, em caves imundas
enchendo o ar com álcool, heroína, electricidade e uma batida frenética sob a
qual se atiravam ao ar, uns contra os outros em urros imperceptíveis se bem que
libertadores. Para trás ficavam os hippies, as flores, a utopia e a destruição
dela. Tudo era aborrecido e estúpido, as cidades, as pessoas, a vida de uma
forma geral. Não se podia mudar nada porque o mundo voltava sempre à sua ordem
por mais que fosse abalado. Nada tinha importância, nem a morte. Escrevo neste
momento sobre a minha geração, que embora mais nova, acaba por ser
completamente inundada pelo espírito destes tempos de vazio e nulidade. Uma
homenagem aos que ficaram pelo caminho e um conforto para os que ainda se
interrogam à beira dos cinquenta porque é que ainda cá estão. Na altura a
sociedade não era nenhuma espécie de inimigo mas antes um buraco imundo onde
nada fazia sentido. Trabalhava-se dia após dia para ter direito a existir, as
guerras ou a sua ameaça atravessavam as comunidades sem que a vontade dos cidadãos
contasse para alguma coisa. No fim, mortos feridos e estropiados, havia sempre
aquele grupo restrito que atravessava os pingos da chuva mas nunca se molhava.
Chegava ao outro lado, sentava-se e começava a distribuir ordens e propaganda.
Por cá tinha havido uma guerra e a seguir uma revolução. A sociedade mudava, ou
fingia mudar, seguia os pensamentos de Lampedusa n’ “O Leopardo” ( “É preciso mudar para que tudo fique na
mesma”). Os partidos tomavam conta da propaganda e da ordem, dividiam entre si,
mordiam-se na conquista pelo poder, não permitiam que nada acontecesse sem a
sua supervisão. Ficou um breve espaço na música. Aí, graças a dois ou três
iluminados da rádio e das artes em geral houve um breve tempo em que todas as
semanas choviam bandas do céu, bandas que cantavam em português. Por um breve
tempo o recreio esteve aberto no 2001, no “Rock Rendez Vous”, mais tarde no
“Johny Guitar”. Mas nesta terra em que eram poucos os “livres” e maioritários
os cobardes, tudo se foi apagando lentamente como um bico de gás, um candeeiro
a petróleo. A mediocridade e a sacanice voltaram da rua, sentaram-se e
continuaram o seu trabalho de organizar e dirigir. Pelo caminho muitos foram os
caídos nesta guerra sem armas, muitos foram os que desapareceram antes do tempo
com muito ainda para dar. Vivia-se como se não houvesse amanhã…porque de facto
nunca houve amanhã nenhum digno desse nome, pelo menos para nós. Sexo,
acidentes de carro, overdoses, pontos de chegada de uma destruição voluntária
que começava no exterior e terminava em nós. Ninguém julgava que chegaria a ter
40 anos. E quem lá chegou assustou-se porque teve que rever a sua vida, as suas
prioridades para um tempo que não existia. No fundo, fomos todos um bocado como
o Sid. O mundo e a sociedade eram um caldeirão malcheiroso, uma condenação, um
absurdo colossal. Sem razão, sem nexo, sem ponta por onde pegar. Era assim que
pensávamos, atitude que nos custou a ausência, o silêncio e a indiferença de
tudo e de todos. A geração nascida na década de 60 passou por aqui quase sem
deixar rasto, sem vontade de deixar o que quer que seja. Agora, quase a chegar
aos 50 (poderei estar enganado, mas estou-me cagando), pensamos exactamente da
mesma maneira. E quem disser o contrário ou não tiver opinião é porque já não
quer mais chatices nem polémicas ou por medo intelectual. Falo dos livres, dos
que nunca estiveram à venda, dos que respeitaram os seus valores. Não me refiro
à massa anónima e indiferente que passou pela vida a ser conduzida por todas as
vontades menos pela sua. O Sid era completamente chanfrado, decadente, toxicodependente,
estúpido e inconsequente. Mas os santos não precisam de atestados de sanidade
para se fazer o seu culto. Estampam-se em imagens que se guardam na carteira,
em pequenas estatuetas colocadas nos recantos do culto, em Cds nostálgicos e “colectâneos” que nos aquecem
as memórias. O Punk enquanto atitude nunca morreu porque foi apenas o
enquadramento de uma vontade tão antiga como a própria Humanidade. Nos anos 70
teve esse nome, um tipo de música, uma espécie de liturgia que o acompanhou.
Mas o impulso, a vontade de ser livre, o desprezo pela carneirada e pela
hipocrisia existiu em todas as épocas, fez parte de todas as gerações. A nós
que nunca cá estivemos, a nós que nunca existimos resta-nos fechar o ciclo de
memórias, aguentar as feridas e resistir ao “estado das coisas” até morrer.
Deixando algumas lembranças, desenhando alguns momentos, quando conseguimos
falar diremos: “Fomos assim. Foi assim. Mesmo quando parece que nada se passou,
foi assim. Não temos nada para ensinar nem nada para reclamar a não ser a nossa
raiva, a nossa Liberdade.” Quanto ao resto, parafraseando esse grande Punk
chamado Luís Pacheco: “Puta que os pariu!”
Artur
Sem comentários:
Enviar um comentário