quarta-feira, 24 de julho de 2013

A CRÓNICA DE COISÍSSIMA NENHUMA


 

Noite solitária em casa, comando na mão e toca a tropeçar sobre as possibilidades do cabo, estupidez, vazio, absurdo. De repente imagens familiares de Londres, jovens bêbados enrolados em tiras de cabedal e tachas distribuídas ao acaso destroem um Rolls Royce com um pé de cabra só pelo prazer de o fazer enquanto gritam o nome de uma amiga que mora para aqueles lados aos berros. John e Sidney. Demasiado familiar, volto atrás, confirmo. Volto a SID AND NANCY realizado por Alex Cox, um documento importante de 1986 que pretende ilustrar os últimos anos do mítico baixo dos “Sex Pistols”, a sua ruptura com a banda na tour aos Estados Unidos e a relação tormentosa e decadente com a sua companheira Nancy. Havia fotografias dele e dos discos nos cadernos e na cabeça da maioria dos adolescentes do meu tempo, era um dos primeiros ícones de uma geração que adorava aquela postura desafiante, degradada e indiferente de fazer música e de estar na vida. O Punk enquanto atitude filosófica e comportamental morria com o seu melhor acabado ícone em 1979 ao fim de uma jornada de decadência e adição inconsequente. No vazio do maior dos vazios os jovens rejeitavam a vida, a sociedade e tudo o que ela tinha (?) para lhes oferecer. Fechavam-se em buracos escuros, em caves imundas enchendo o ar com álcool, heroína, electricidade e uma batida frenética sob a qual se atiravam ao ar, uns contra os outros em urros imperceptíveis se bem que libertadores. Para trás ficavam os hippies, as flores, a utopia e a destruição dela. Tudo era aborrecido e estúpido, as cidades, as pessoas, a vida de uma forma geral. Não se podia mudar nada porque o mundo voltava sempre à sua ordem por mais que fosse abalado. Nada tinha importância, nem a morte. Escrevo neste momento sobre a minha geração, que embora mais nova, acaba por ser completamente inundada pelo espírito destes tempos de vazio e nulidade. Uma homenagem aos que ficaram pelo caminho e um conforto para os que ainda se interrogam à beira dos cinquenta porque é que ainda cá estão. Na altura a sociedade não era nenhuma espécie de inimigo mas antes um buraco imundo onde nada fazia sentido. Trabalhava-se dia após dia para ter direito a existir, as guerras ou a sua ameaça atravessavam as comunidades sem que a vontade dos cidadãos contasse para alguma coisa. No fim, mortos feridos e estropiados, havia sempre aquele grupo restrito que atravessava os pingos da chuva mas nunca se molhava. Chegava ao outro lado, sentava-se e começava a distribuir ordens e propaganda. Por cá tinha havido uma guerra e a seguir uma revolução. A sociedade mudava, ou fingia mudar, seguia os pensamentos de Lampedusa n’ “O Leopardo”  ( “É preciso mudar para que tudo fique na mesma”). Os partidos tomavam conta da propaganda e da ordem, dividiam entre si, mordiam-se na conquista pelo poder, não permitiam que nada acontecesse sem a sua supervisão. Ficou um breve espaço na música. Aí, graças a dois ou três iluminados da rádio e das artes em geral houve um breve tempo em que todas as semanas choviam bandas do céu, bandas que cantavam em português. Por um breve tempo o recreio esteve aberto no 2001, no “Rock Rendez Vous”, mais tarde no “Johny Guitar”. Mas nesta terra em que eram poucos os “livres” e maioritários os cobardes, tudo se foi apagando lentamente como um bico de gás, um candeeiro a petróleo. A mediocridade e a sacanice voltaram da rua, sentaram-se e continuaram o seu trabalho de organizar e dirigir. Pelo caminho muitos foram os caídos nesta guerra sem armas, muitos foram os que desapareceram antes do tempo com muito ainda para dar. Vivia-se como se não houvesse amanhã…porque de facto nunca houve amanhã nenhum digno desse nome, pelo menos para nós. Sexo, acidentes de carro, overdoses, pontos de chegada de uma destruição voluntária que começava no exterior e terminava em nós. Ninguém julgava que chegaria a ter 40 anos. E quem lá chegou assustou-se porque teve que rever a sua vida, as suas prioridades para um tempo que não existia. No fundo, fomos todos um bocado como o Sid. O mundo e a sociedade eram um caldeirão malcheiroso, uma condenação, um absurdo colossal. Sem razão, sem nexo, sem ponta por onde pegar. Era assim que pensávamos, atitude que nos custou a ausência, o silêncio e a indiferença de tudo e de todos. A geração nascida na década de 60 passou por aqui quase sem deixar rasto, sem vontade de deixar o que quer que seja. Agora, quase a chegar aos 50 (poderei estar enganado, mas estou-me cagando), pensamos exactamente da mesma maneira. E quem disser o contrário ou não tiver opinião é porque já não quer mais chatices nem polémicas ou por medo intelectual. Falo dos livres, dos que nunca estiveram à venda, dos que respeitaram os seus valores. Não me refiro à massa anónima e indiferente que passou pela vida a ser conduzida por todas as vontades menos pela sua. O Sid era completamente chanfrado, decadente, toxicodependente, estúpido e inconsequente. Mas os santos não precisam de atestados de sanidade para se fazer o seu culto. Estampam-se em imagens que se guardam na carteira, em pequenas estatuetas colocadas nos recantos do culto, em Cds  nostálgicos e “colectâneos” que nos aquecem as memórias. O Punk enquanto atitude nunca morreu porque foi apenas o enquadramento de uma vontade tão antiga como a própria Humanidade. Nos anos 70 teve esse nome, um tipo de música, uma espécie de liturgia que o acompanhou. Mas o impulso, a vontade de ser livre, o desprezo pela carneirada e pela hipocrisia existiu em todas as épocas, fez parte de todas as gerações. A nós que nunca cá estivemos, a nós que nunca existimos resta-nos fechar o ciclo de memórias, aguentar as feridas e resistir ao “estado das coisas” até morrer. Deixando algumas lembranças, desenhando alguns momentos, quando conseguimos falar diremos: “Fomos assim. Foi assim. Mesmo quando parece que nada se passou, foi assim. Não temos nada para ensinar nem nada para reclamar a não ser a nossa raiva, a nossa Liberdade.” Quanto ao resto, parafraseando esse grande Punk chamado Luís Pacheco: “Puta que os pariu!”

 

Artur

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