sábado, 27 de julho de 2013

MARTIN EM BERLIM (I)



Chamou-se em português "Os Malditos", "La Caduta degli Dei" no original, "Götterdamerung" em alemão. É talvez o mais complexo e labiríntico filme de Luchino Visconti. Tudo começa num ambiente intimista; um jovem pianista (Gunther) toca perante toda a família, reunida para celebrar o aniversário do patriarca da família Essenbeck, a câmara inicia um movimento envolvente em torno do círculo familiar. Tudo está disposto (o cenário, as personagens principais e secundárias) para que o filme reflicta a concepção viscontiana da vida: teatral, cerrada e trágica. É uma espécie de quadro ilusoriamente idílico e aparentemente pacífico, prestes a ser destroçado pelas novas forças que vêm romper o equilíbrio do recanto centro-europeu com o fragor e o rugido das modernas fundições do aço: o clamor do fogo. O fogo dos altos fornos siderúrgicos e do incêndio do Reichstag. Os interesses do império industrial germânico são abocanhados quando entram ao serviço de uma nova noção de Estado, implacável e totalitária. Na família, o conflito dinástico roda em torno da mãe, a abelha-mestra. Entretanto, pelas ruas profanadas, entre fogueiras e cinzas de livros e partituras, desfilam as comitivas nacional-socialistas entoando a "Horst Wessel Lied" e passma os esquadrões bárbaros, impantes de valentia e cegos, como os deuses de Wagner, sob o céu turvo de Berlim.

Todavia, o que torna este filme estranhamente inquietante é o modo como as imagens conseguem fazer com que dois planos completamente opostos  - o moral, centrado numa crítica mordaz, e o estético, diluído num estilismo decadente - apareçam relacionados por uma trama que, em algumas ocasiões, deixa transparecer um vago fascínio. A Alemanha que atrai Visconti é ambígua: é a Alemanha do desastre, das grandes catástrofes em que se funda a vontade de poder - como dizia Paul Claudel: "A ideia de uma catástrofe enorme e real é tão arrebatadora para os alemães, como foi para os franceses a ideia da Revolução" - mas é também a Alemanha de Wagner, obcecada com a morte e o impossível. É a Alemanha de Thomas Mann, especialmente a que foi descrita em "Os Buddenbrook", no qual se inspira, e é a Alemanha de Nietzsche e de Freud. A Alemanha do Iluminismo e a Alemanha das sombras. A Alemanha eterna, fechada sobre si mesma, romântica, faústica e demoníaca. A Alemanha dos filmes de Fritz Lang e de F.W. Murnau. Na mesma cena da abertura encontramos esta dicotomia: frente à sonata de Bach interpretada por Gunther como recital de álgebra pura, estão os acordes estridentes e grotescos de Martin, que entoa uma canção de cabaret, travestido, com as sobrancelhas depiladas e as pestanas postiças, parodiando Marlene Dietrich em "O Anjo Azul" de Joseph Von Sternberg. É essa linha de demarcação entre a civilização e a barbárie que assinala a beira do abismo, não só no subconsciente colectivo alemão, mas também, provavelmente, na mente de Visconti.
A sua perspectiva cinematográfica responde às mesmas tensões que conformam a sua personalidade fragmentada, oscilando entre a sua condição de aristocrata e a sua adesão à ideologia marxista, entre a sua fidelidade conceptual ao realismo revolucionário e o seu amor declarado pelo melodrama e o decadentismo, entre a exaltação de um futuro utópico e o apego sentimental, íntimo, freudiano a um passado impossível. Aos piores anos de ascensão do nazismo (objecto de um outro grande filme, "O Ovo da Serpente" de Ingmar Bergman) contrapõe a pujança agressiva, caricatural, fálica, representada pelo couro engraxado e pelo caos de correias e arreios militares da Juventude hitleriana e das S.A., com a sensibilidade esteticizante reflectida nos sumptuosos  trajes, das perucas, dos véus vaporosos e dos pós de maquilhagem, que emanam um perfume nostálgico e assinalam os traços de uma civilização aristocrática, talvez demasiado débil, quebradiça, moribunda. Talvez nada atraísse tanto Visconti, tão preocupado com os cânones e a harmonia, como as transgressões de Martin, o herdeiro dos Essenbeck: as cenas mais fortes são aquelas que melhor reflectem os sentimentos desencontrados de atracção e repulsa: as perversões morais e sexuais, a violação, os crimes, o mundo pétreo do universo familiar, uma espécie de destino a que é impossível escapar e que culmina no grande deslumbramento sombrio do incesto. Curiosamente, esse mesmo fascínio permite ao cineasta sublinhar aquilo que em termos marxistas poderemos chamar de contradição principal. Que o mesmo é dizer: a que existe entre o poderio industrial dos Essenbeck, o seu passado aristocrático fundado na ordem patriarcal e em determinados valores, o seu grande legado musical, representado pelas sublimes sinfonias clássicas: Bach, Mozart, Mahler, Beethoven, Wagner. Por outro lado, as dissonâncias que resultam da subordinação dos supostos guardiães da civilização ao Terceiro Reich, cavando a sua sepultura quando colaboram com os nazis, a quem desprezam violentamente ("Onda imensa de barbárie excêntrica e vulgaridade primitiva, plebeiamente democrática", no dizer de Thomas Mann). Creio que seria este o único modo de afirmar o contraste, ou o paradoxo, elemento essencial para a compreensão da alma humana. A contradição coloca o espírito em alerta e aguça o engenho. Sem contradição não há drama. E é precisamente o drama que move Visconti como artista e como homem. E foi também desse modo que escolheu comprometer-se politicamente.




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