Todas as manhãs do Mundo são sem regresso.
Pascal Quignard
Todas as recordações são traços de lágrimas
II
Sobre a obra de Franz Kafka já correram oceanos de tinta; escreveram-se bibliotecas inteiras; produziram-se milhares de palestras e colóquios. Neste mesmo blog se tem escrito a torto e a direito sobre Kafka e os raros livros que escreveu. Esta circunstância, brutal na sua evidência, coloca sérias dificuldades a todos aqueles que pensarem ser capazes de dizer qualquer coisa de novo sobre, por exemplo, um livro como "O Processo": a literatura secundária sobre esta obra é como um vírus: multiplica-se diariamente nas universidades, na ensaística literária, no jornalismo especializado. Parasita todos os elementos (dir-se-ia mesmo: todos os parágrafos), todos os constituintes temáticos, formais e de estilo, esgotando totalmente um texto que parece inesgotável e provocando uma espécie de cansaço ou de saturação que se torna insuportável. Creio, no entanto, que este manancial tem um efeito perverso: por muito fina que seja a análise e por muito fortes que sejam os sistemas que a sustentam - psicanálise, estruturalista, post-estruturalista ou tradicional) não só as leituras propostas se revelam insuficientes, como também tornam a obra progressivamente mais incompreensível. Este paradoxo - que Kafka decerto haveria de apreciar - resulta na impossibilidade de uma leitura espontânea do livro, suprimindo de algum modo a sua capacidade de choque e pavor. No fundo, quanto mais se escreve e se lê sobre "O Processo", mais a obra se torna obscura e incompreensível. Excepto, direi eu, numa acepção marxista, ou seja, numa leitura marxista - a única aceitável - que coloque em evidência o facto de que prisão arbitrária de Joseph K., os tribunais opacos que enfrenta e por vezes desafia, a sua morte literalmente bestial, constituírem o alfabeto primário do totalitarismo. A lógica demencial da burocracia que o romance denuncia constitui o dia a dia das nossas profissões, dos nossos litígios e conflitos, das nossas relações com o aparelho estatal e com a fiscalidade, da passividade dos governados e da estupidez dos governantes, mesmo nas democracias mais perfeitas. Eu disse marxista? Na realidade, queria dizer outra coisa qualquer: queria falar da instabilidade e do carácter espectral da vida moderna e das nossas vidas no inferno do neoliberalismo, queria dizer qualquer coisa sobre uma nova física da indeterminação, queria falar da "loucura" kafkiana e do paradoxo da qual ela procede: de uma via metafísica que lhe garante acesso à modernidade. Eu sei lá o que queria dizer.
Sem comentários:
Enviar um comentário