terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O MÁRTIR IRLANDÊS


      MICHAEL COLLINS



Neil Jordan



Irlanda, Reino Unido, EUA


É dentro de grande polémica que a Europa recebe MICHAEL COLLINS nos idos de 90 do passado século. Inteligente, absoluto e problemático, o filme aborda uma das figuras centrais na secular história de dor, sangue e luta pela independência do povo irlandês contra a administração e ocupação britânica. Passada no primeiro quartel do século XX, a época de Michael Collins carrega consigo o fardo suplementar de uma situação desagradável, aparentemente sem solução à vista. Tratando-se de um conflito regional deliberadamente pouco divulgado e pouco debatido nos “media” europeus, o tema podia ser pouco estimulante para os potenciais espectadores. Daí que o cineasta Neil Jordan ao escrever o argumento no início da década de 80 tenha encontrado uma solução que, embora ilustrando o conflito, não deixa de cativar audiências. Para tal concorrem por um lado as imagens de Chris Menges, e por outro o ritmo alucinante da acção.

Com tantas explosões, tiros de metralhadora e execuções, corremos o risco de nos julgarmos por momentos na Chicago dos anos 20 em vez de em Dublin alguns anos antes. O contraponto da violência é feito pelo triângulo amoroso Collins (Liam Neeson), Harry Boland (Adam Quinn) e Kitty Kiernan (Julia Roberts) que, tendo ou não acontecido, será o único espaço do filme onde é permitido respirar.

Michael Collins foi um dos primeiros guerrilheiros da luta pela independência da Irlanda que, após o fracasso do “levantamento da Páscoa” em 1916, concluiu que qualquer luta convencional com os ingleses estaria condenada ao fracasso. Por isso fundou os “Irish Volunteers”, um grupo de cidadãos comuns que acabaram por promover emboscadas e outro tipo de acções armadas bem sucedidas contra aqueles que ocupavam o seu território desde o séc. XII. O bombardeamento dos irlandeses em luta pela liberdade em 1916 e as subsequentes execuções da maioria dos cabecilhas do movimento são suficientemente esclarecedoras das noções de respeito e obediência exigidas pela coroa britânica. Dois anos depois, um dos soldados do movimento (Collins) é libertado, iniciando-se a partir desse momento uma actividade política renovada pelo auxílio de discursos inflamados. A célebre frase “by whatever means necessary” abre o caminho da luta armada, uma nova fase de acção mais dura e violenta, embrionária do futuro exército republicano de libertação (IRA). A violência entrará então em espiral, dos dois lados do conflito, não poupando ninguém pelo caminho.

Se por um lado podemos afirmar que foi dado o grito de guerra aos ingleses, por outro abriram-se também as primeiras grandes divisões entre irlandeses. Facto que ainda hoje enfraquece as pretensões mais radicais de emancipação. Como se, quando se conseguiu lidar com o passado, dificilmente se poderá projectar o futuro a uma só voz. Elemento que jogou sempre a favor das pretensões britânicas. Problema bastante complicado a que Neil Jordan nem tenta responder. Collins irá receber a Londres a independência da Irlanda mas a totalidade desse acto nunca será negociada. Os ingleses mantêm o Ulster sob a sua administração. Mártir da independência, Collins acabará por ser sacrificado na luta entre irlandeses que se segue. Os que exigem a independência total e absoluta e os que defendem começar a nova república. Os políticos manobram na sombra e conseguem livrar-se dos ícones revolucionários, sacrificando-os às incompreensões da História. A fórmula normal de qualquer revolução. Na parábola do triângulo amoroso entre Collins, Kitty e Harry vamos encontrar os dois lados amantes da mesma Irlanda, divididos pela exclusividade desse amor que reclamam. A Irlanda continuará viva, enquanto que as facções acabaram por se devorar entre si. Collins é o grande mártir da independência da Irlanda morto às mãos dos seus compatriotas, em vez de às da potência ocupante contra a qual sempre se bateu. Mais uma demonstração da criatividade e maturidade irlandesas que abordam temas tão sensíveis da sua consciência colectiva sem demagogias patrióticas nem maniqueísmos dispensáveis. A luta de um povo faz-se de contradições, erros, fatalidades. E é o conjunto de todos esses elementos, conjugado com a consciência que se tem deles, que permite construír um futuro mais sólido e amadurecido.

Leão de Ouro para o melhor filme e melhor actor no Festival de Veneza erm 1996, MICHAEL COLLINS é sem dúvida uma narrativa apaixonante sobre o amor e a guerra, a dignidade e a teimosia.



Artur

2 comentários:

A.Teixeira disse...

O filme tem mérito - reconhecido aliás pelos prémios - mas quem conhecer os meandros da História da Irlanda do primeiro quartel do Século XX apercebe-se que o enredo é apenas "baseado" em factos reais.

O Eamon de Valera histórico não tem quase nada a ver com a personagem perturbada e tortuosa interpretada por Alan Rickman. E as rivalidades políticas irlandesas incluíam a poderosa facção unionista protestante, que era maioritária no Ulster, e da qual mal se dá conta ao longo do filme.

Artur Guilherme Carvalho disse...

O registo fílmico não tem o rigor do trabalho historiográfico. Naquele escolhem-se aspectos da realidade para desenvolver um modelo narrativo limitado. Neste tenta-se abarcar ao máximo todo o tipo de informação para depois concluír, estabelecer directrizes, encontrar sequências de factos. Como eu refiro nesta crónica, o próprio triângulo amoroso Collins, Kitty, Harry, é muito duvidoso que tenha acontecido. No entanto serve para estabelecer a alegoria das duas facções(republicanos/unionistas) sobre a mesma Irlanda. O filme é honesto ao deixar claro que as rivalidades entre facções irlandesas mataram quase tanto como as próprias forças de ocupação britânicas.