Olho-te nos olhos em frente ao espelho e vejo tantos dias,
tantas histórias que poderias contar. As vezes que foste águia sobre as
montanhas, golfinho nas ondas do mar. Olho-te nos olhos com a cara branca cheia
de sabão antes de fazer a barba e lembro-me de tantos, de tanta gente que
vestiu o mesmo bibe que eu na escola, de tanta gente que ouviu a última canção
a seguir às aulas, que bebeu umas cervejas. Olho-te nos olhos e vejo que estás
a descer na curva do tempo a caminho do nada que aqui te depositou. A lâmina
acaricia-te as bochechas como o tempo te foi raspando quem eras, quem querias
ser e nunca foste. Tornaste-te uma coisa que não pensavas, somaste idades que
nunca pensaste alcançar e agora olhas-me no espelho e a única coisa que se
mantém inalterável são os olhos, os olhos que te olham tranquilos e sem medo,
os olhos que deixaram de ser inquietos em permanente estado de alerta. Houve
aqueles miúdos que já morreram antes do tempo, aqueles guerreiros profissionais
na tropa, os colegas, os amigos, os concertos e as noites eternas. Tantas
histórias quiseste contar, as histórias deles todos, a memória, a marca do
rasto deixado por breves existências. Porque foi por eles, é para eles que as
contas, para lhes dizer que os lembras e que ainda os amas por mais fios de
lâmina que o tempo vá raspando sobre ti. Não fizeste tudo o que querias, a tua
história não aconteceu como tinhas previsto…mas foi assim que acabou por
acontecer. E agora a caminho da morte não tens medo nem raiva, nem nenhuma espécie
de ódio por ninguém. Quanto mais curto o caminho mais serenas são as margens,
mais tranquila é a paisagem, mais harmoniosa se desenrola a morfologia do
terreno. Nada a lamentar, portanto, quando te olho nos olhos em frente ao
espelho. O amor dos outros ajudou-te nesta caminhada, amparou o teu sofrimento
e frustração. A família, os amigos, pérolas em estado bruto que na maior parte
das vezes não se deixam ver, não dão nas vistas, mas estão lá. Olho-te nos
olhos em frente ao espelho enquanto ouço uma guitarra melancólica em noite
quente de Verão. Uma guitarra que toca a melodia mais triste e mais bonita que
as cordas podem vibrar. E um pé na estrada à boleia a caminho de algum lugar.
Não sabes para onde vais, só tens a certeza que nunca voltarás atrás, ao que
eras, ao que fazias, aos passos que não se voltam a dar. A caminho da morte… a
caminho da morte acordamos todos os dias, fazemos tudo em função dela mesmo que
não tenhamos consciência, tentamos ser absolutos, magníficos, implacáveis. E no
fim não passamos de pardais a tentar planar no meio de um temporal a caminho de
casa. Olho-te nos olhos em frente ao espelho e não lamento não ter sido quem
queria ser porque fui o que agora sou e não posso mudar nada. Levo na mala as
memórias, as histórias e os sorrisos de quem amei, de quem me amou porque vou
precisar deles quando nos voltarmos a encontrar. Olho-te nos olhos e
encorajo-te a levar contigo só o que puderes carregar. A deixar o ódio e o
rancor, a tristeza e a dor. E também, partes da alegria. Não precisas de nada
disto uma vez alcançada a serenidade. Só precisas de passar a água na cara,
limpar o sabão e continuar. Continuar com um passo mais lento, um olhar mais
tranquilo e sem medo, um saber acumulado que a frustração e a tristeza ajudaram
a erguer. Depois de uma certa idade as vertigens são como as mulheres. Antes,
perante o abismo a vontade era saltar, agora a vertigem do salto é uma amiga de
longa data a quem perguntamos pelos filhos, com quem conversamos sem baixar o
nível do olhar, uma amiga cuja companhia nos conforta, cuja gargalhada nos faz
rir. Agora não há necessidade de saltar, não há necessidade de provar nada. Já
foi tudo inventado inclusive a tua vida, não há espaço para mais invenções. Há
o fio de lâmina, o fio do tempo que continua a raspar-te a cara, a raspar-te os
dias naturalmente. Há as histórias, haverá sempre. São a única maneira de
perceber o tempo de hoje, de como é que se chegou aqui, de porque é que ainda
se está a olhar para o espelho a tentar ler o olhar do outro. Há as histórias
de outros tempos e lugares, de outras gentes, memórias que é preciso registar,
deixar o rasto, fazer a barba e continuar…
Artur
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