terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A LÂMINA DO TEMPO



 
Olho-te nos olhos em frente ao espelho e vejo tantos dias, tantas histórias que poderias contar. As vezes que foste águia sobre as montanhas, golfinho nas ondas do mar. Olho-te nos olhos com a cara branca cheia de sabão antes de fazer a barba e lembro-me de tantos, de tanta gente que vestiu o mesmo bibe que eu na escola, de tanta gente que ouviu a última canção a seguir às aulas, que bebeu umas cervejas. Olho-te nos olhos e vejo que estás a descer na curva do tempo a caminho do nada que aqui te depositou. A lâmina acaricia-te as bochechas como o tempo te foi raspando quem eras, quem querias ser e nunca foste. Tornaste-te uma coisa que não pensavas, somaste idades que nunca pensaste alcançar e agora olhas-me no espelho e a única coisa que se mantém inalterável são os olhos, os olhos que te olham tranquilos e sem medo, os olhos que deixaram de ser inquietos em permanente estado de alerta. Houve aqueles miúdos que já morreram antes do tempo, aqueles guerreiros profissionais na tropa, os colegas, os amigos, os concertos e as noites eternas. Tantas histórias quiseste contar, as histórias deles todos, a memória, a marca do rasto deixado por breves existências. Porque foi por eles, é para eles que as contas, para lhes dizer que os lembras e que ainda os amas por mais fios de lâmina que o tempo vá raspando sobre ti. Não fizeste tudo o que querias, a tua história não aconteceu como tinhas previsto…mas foi assim que acabou por acontecer. E agora a caminho da morte não tens medo nem raiva, nem nenhuma espécie de ódio por ninguém. Quanto mais curto o caminho mais serenas são as margens, mais tranquila é a paisagem, mais harmoniosa se desenrola a morfologia do terreno. Nada a lamentar, portanto, quando te olho nos olhos em frente ao espelho. O amor dos outros ajudou-te nesta caminhada, amparou o teu sofrimento e frustração. A família, os amigos, pérolas em estado bruto que na maior parte das vezes não se deixam ver, não dão nas vistas, mas estão lá. Olho-te nos olhos em frente ao espelho enquanto ouço uma guitarra melancólica em noite quente de Verão. Uma guitarra que toca a melodia mais triste e mais bonita que as cordas podem vibrar. E um pé na estrada à boleia a caminho de algum lugar. Não sabes para onde vais, só tens a certeza que nunca voltarás atrás, ao que eras, ao que fazias, aos passos que não se voltam a dar. A caminho da morte… a caminho da morte acordamos todos os dias, fazemos tudo em função dela mesmo que não tenhamos consciência, tentamos ser absolutos, magníficos, implacáveis. E no fim não passamos de pardais a tentar planar no meio de um temporal a caminho de casa. Olho-te nos olhos em frente ao espelho e não lamento não ter sido quem queria ser porque fui o que agora sou e não posso mudar nada. Levo na mala as memórias, as histórias e os sorrisos de quem amei, de quem me amou porque vou precisar deles quando nos voltarmos a encontrar. Olho-te nos olhos e encorajo-te a levar contigo só o que puderes carregar. A deixar o ódio e o rancor, a tristeza e a dor. E também, partes da alegria. Não precisas de nada disto uma vez alcançada a serenidade. Só precisas de passar a água na cara, limpar o sabão e continuar. Continuar com um passo mais lento, um olhar mais tranquilo e sem medo, um saber acumulado que a frustração e a tristeza ajudaram a erguer. Depois de uma certa idade as vertigens são como as mulheres. Antes, perante o abismo a vontade era saltar, agora a vertigem do salto é uma amiga de longa data a quem perguntamos pelos filhos, com quem conversamos sem baixar o nível do olhar, uma amiga cuja companhia nos conforta, cuja gargalhada nos faz rir. Agora não há necessidade de saltar, não há necessidade de provar nada. Já foi tudo inventado inclusive a tua vida, não há espaço para mais invenções. Há o fio de lâmina, o fio do tempo que continua a raspar-te a cara, a raspar-te os dias naturalmente. Há as histórias, haverá sempre. São a única maneira de perceber o tempo de hoje, de como é que se chegou aqui, de porque é que ainda se está a olhar para o espelho a tentar ler o olhar do outro. Há as histórias de outros tempos e lugares, de outras gentes, memórias que é preciso registar, deixar o rasto, fazer a barba e continuar…

 

Artur

 

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