quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

PASOLINI EM JERUSALÉM






Em 1963, Pier Paolo Pasolini realizou o filme "Il Vangelo Secondo Matteo" (O Evangelho Segundo S. Mateus). O Ofício Católico Para o Cinema reconheceu as qualidades espirituais da obra, a magistral interpretação do Evangelho e o modo como o filme fora tocado pela Graça e pela Verdade da figura de Jesus Cristo, tendo-lhe atribuído o prémio Fipresci no Festival de Veneza desse ano. Pasolini era comunista, ateu e homossexual. Na cadeira papal do Vaticano sentava-se o Bom Papa João XXIII.
Em 1998, durante um estágio na Cinemateca Francesa, tive a oportunidade de ver um filme chamado "Supraluoghi In Palestina" .Passei este tempo todo a procurar em vão esse filme, de tal modo ele me tocou e impressionou. Parecia quase impossível voltar a vê-lo e voltar a deixar-me impressionar pelo poder dessas imagens. Eis senão quando, na semana passada e na sequência de uma troca de e-mails com um colega do Museo Nazionale del Cinema de Turim, o filme veio parar à minha caixa de correio, sem que eu o esperasse. Deve ter passado este tempo à minha procura e eu, procurando por ele, sem o achar. É talvez um milagre dos tempos modernos.
E o que vem a ser tão raro e precioso objecto ? Trata-se de um documentário realizado por Pasolini na Palestina, previamente à rodagem de "Il Vangelo Secondo Matteo", destinado a escolher os locais onde o filme seria filmado e a procurar os vestígios aptos a traduzirem no presente - na linguagem da realidade - a poesia do texto de Mateus. A grande qualidade da obra reside na fascinante exposição do próprio Pasolini, a encenação do seu trabalho e as múltiplas interrogações que vão surgindo, à medida que o cineasta escassa ou nulamente encontra aquilo que procura. Esse desnudamento de Pasolini compagina-se com a visível evolução espiritual do cineasta que, acompanhado pelo teólogo Andrea Carraro, retraça o suposto percurso de Cristo na época da sua predicação: os espaços, as paisagens que descobre estão quase todas contaminadas pela modernidade e já nada têm de "bíblico", um sentimento experimentado ao longo da viagem e expresso ao longo do filme. Assim, o documentário parece organizar-se em torno de uma linha de partilha constantemente redesenhada por Pasolini : de um lado o mundo antigo, pobre e tradicional, representado pela sociedade árabe; do outro o mundo moderno, rico e industrial, assumido pela sociedade israelita.
Mas, o que mais me tocou e impressionou no filme foi o modo como Pasolini procura as ruínas no seio do presente, procurando nessas ruínas aquilo que pode conter e exprimir a profunda poética do texto do evangelista. Esta vontade de articular passado e presente sem apelar à reconstituição histórica, mas apoiando-se numa memória dos lugares e dos corpos inscreve Pasolini num movimento de redefinição da nossa relação com a História que ultrapassa largamente o cinema. Contudo, esse mesmo movimento está todo contido no próprio cinema, neste filme, na nossa relação com o texto e, como firmemente creio, liga o processo às teses de Walter Benjamin. Ou seja, encontro a argumentação do filósofo alemão através do olhar do cineasta italiano e quando volto ao "Vangelo Secondo Matteo" reconheço que as ruínas de Matera traduzem no presente a poética e a espiritualidade do escritor hebraico.
A sequência mais impressionante do filme resume-se assim: Pasolini e a sua equipa deixam as margens do lago Tiberíades e dirigem-se a Nazaré. Na estrada, param junto a um campo onde trabalha uma rapariga. Vêmo-la pela primeira vez no interior de um plano geral que coloca em evidência a paisagem, depois o operador de câmara aproxima-se. De pé, sobre uma carroça puxada por dois burros, a criança olha por um instante a câmara que a segue, depois desliga-se dela. Esta cena inspira a Pasolini o comentário: "Uma paisagem com 2000, 3000, 5000 anos. Os burros da Bíblia, a criança da Bíblia. Esse sub-proletariado árabe é a única coisa que permanece verdadeiramente antiga, arcaica...". O cineasta não encontra a criança, reconhece-a. Ela é a criança da Bíblia, viu Jesus Cristo, falou-lhe, provavelmente tocou-lhe. Aliás, Pasolini tem consciência da sacralidade da jovem; aproxima-se para lhe acariciar a face e, no último momento, recua evitando o contacto: tornou-se impossível tocar a "criança da Bíblia" (como tocar num espectro ?), como se tornou impossível continuar a filmá-la.
Conheço poucos filmes tão espirituais (refiro-me aos dois, ou seja, a "Il Vangelo Secondo Matteo" e a "Supraluoghi In Palestina"), tão capazes de superar a distância temporal, física e metafísica que nos separa de Cristo, tão capacitados para criar uma memória afectiva e efectiva do tempo dos milagres, da palavra e da espada daquele que "veio ressuscitar os vivos", como dizia Teilhard de Chardin.

1 comentário:

Anónimo disse...

Arnaldo: absolutamente brilhante ! Arranjas-me ?



Nuno Simas