Dos quatro testemunhos dados da vida de Jesus Cristo, Pasolini escolheu - e essa escolha não foi certamente fruto do acaso - o Evangelho mais sistemático, mais doutrinal, mais austero, aquele que ignora a pequena anedota e coloca em relevo o combate contra as autoridades do país dotadas então de poder político : os escribas, os príncipes dos sacerdotes, os fariseus. É a todos e não somente aos cristãos que Pasolini dá esta lição : é preciso reler Mateus como ele mesmo o releu, sem tomar fôlego, para aí discernir a batalha mais heróica e exemplar que um profeta levou a cabo.
Depois de ter desistido de filmar na Palestina (por razões que explico no texto sobre "Sopraluoghi In Palestina"), Pasolini decidiu filmar na Calábria, nas terras secas e áridas em que uma povoação em ruínas na borda de um declive faz as vezes de Jerusalém. E porque não o faria ? Não é a paisagem mediterrânica muito semelhante nos diversos países ? E o rosto da pobreza, o único que aqui importa, não é o mesmo em toda a parte e em toda a parte semelhante a si mesmo ? Terá mudado alguma coisa em 2000 anos ? O mundo de aqui fervilha de crianças, de doentes, de pequenos burros; homens pobres vagueiam exibindo belas fasces ingénuas; e o drama renasce da terra, o Evangelho vai recomeçar. Faço notar que Pasolini não se detém num realismo que poderia ser simultaneamente simbólico e popular; o estilo da obra é complexo; o décor genericamente teatral. A recordação surge através de obras pictóricas, Giotto por exemplo. Os movimentos das multidões, os motins, a presença dos soldados e, sobretudo, a movimentação da câmara frente aos rostos dos príncipes sacerdotais evocam por vezes Dreyer. Mas o estilo que predomina é sobretudo o do drama sagrado, como o cinema o concebe ainda hoje. Um Cristo de rosto bizantino percorre apressadamente vastas paisagens com os seus discípulos, a quem ministra ensinamentos sem descanso; a ternura e a compaixão afloram raramente. Muito contidas, emergem mesmo assim nas admiráveis cenas do início ou quando a câmara se atarda sobre Maria, envelhecida e desdentada, seguindo Cristo no caminho do Calvário; aflora uma vez ou duas no sorriso de Cristo no meio das crianças. Sinto em Pasolini a vontade de respeitar no homem a transcendência que os crentes vêem em Jesus e que ele mesmo afirma. Esta vontade não passa sem uma certa frieza e sem uma busca demasiado formal do artifício, que nos mostra um Mestre autoritário, comandando homens e elementos naturais, um Pantocrator sublime, sem vida privada, sem afectos, sem humor e sem aquela facilidade soberana de se tornar homem aí mesmo, onde aprendemos a reconhecer o rosto de Deus.
Pasolini escolhe mostrar com insistência as violências exercidas pelos reis e poderosos sobre os pobres e os profetas (massacre dos Inocentes, assassinato de João Baptista na prisão, as brutalidades da Crucifixão) e retrata um Cristo combatente, aguerrido, sem concessões ao sentimentalismo e à piedade. Creio saber porque o fez: o grande texto de Mateus foi longo tempo desmantelado, emasculado, desvitalizado, tornado num conjunto de vozes untuosas e porosas, destinado a adormecer as crianças e a acalmar os moribundos. Através do cinema, Pasolini devolveu-lhe a impaciência, a actualidade, o sentido revolucionário.
O filme chama-se "Il Vangelo Secondo Matteo / O Evangelho Segundo S. Mateus". Foi realizado por Pier Paolo Pasolini em 1963.
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