Folheio ao acaso um dos meus dicionários filosóficos e descubro o conceito que melhor descreve o meu estado de espírito: "apatheia", uma palavra grega que designa o facto de não se sofrer uma afecção, de estar intacto, indemne de todo o sentimento. Fecho o dicionário e procuro lembrar-me de antigas e esquecidas lições: para os estóicos, o afecto é sempre irracional, violento e contra-natura. A apatia é o estádio em que o sábio se livra de sarilhos; não se trata, segundo Séneca, de não sentir nada, mas de não ser conduzido pelas paixões. A ética estóica do distanciamento tem associada uma estética da privação do movimento que Winckelmann desenvolve em "Reflexões sobre as imitações das obras gregas em pintura e em escultura", mostrando-se sensível à "nobre simplicidade e grandeza serena das estátuas gregas". As páginas que Hegel consagrou à estatuária grega considerada como o estádio de desenvolvimento "clássico" da história da arte, associa a impressão de calma procurada pelas esculturas à esfera do divino. Não sou um estóico, nem um sábio, nem um esteta. Aliás, o meu credo político e estético é uma canção da Adriana Calcanhotto chamada "Senhas" e que reza assim : "Eu não gosto do bom gosto / eu não gosto do bom senso / eu não gosto dos bons modos / não gosto (...) Eu aguento até os modernos / e seus segundos cadernos / eu aguento até os caretas / e suas verdades perfeitas / o que eu não gosto é do bom gosto (...) / eu aguento até os estetas / eu aplaudo rebeldias / eu respeito tiranias / e compreendo piedades / eu não condeno mentiras / eu não condeno vaidades / o que eu não gosto é do bom gosto". Portanto, a apatia que sinto deriva de um imenso tédio, de uma nostalgia difusa, da ligeira naúsea que a vida me provoca e que queria transformar numa estética da distância (apatheia) que me permitisse abstrair-me das atribulações humanas. Não das minhas, que essas posso bem com elas, mas as desta legião de desesperados que todos os dias me entra pela casa dentro exibindo a sua humanidade imediata e violenta, óbvia nas suas necessidades não satisfeitas; os humilhados e ofendidos que vão alastrando como uma epidemia incontrolável; os despojados e a sua irresistível tendência para a resignação; os banqueiros e o cancro moral que os rói ; os economistas a pataco perorando sobre défices, balanças comerciais, dívida pública e afins; os gajos de fatinho com a bandeira nacional pregada na lapela; etíopes e abissínios; azeiteiros, merceeiros, boys e etc.
Erijo a apatia como uma categoria da imobilidade que situa a personagem de ficção que também sou no quadro de uma transcendência: a ausência do movimento corresponde a um hieratismo que é a expressão de um poder carismático. A apatia produz sentido e simula a indiferença. Vou a correr ver "Apocalypse Now": Marlon Brando encarna o misterioso Coronel Kurtz, uma espécie de buda avaro de movimentos, cujas meditações metafísicas oferecem um contraste agudo com a crueldade das suas acções. Onde estão agora as estátuas gregas ? Onde pára a sua serena beleza e onde se quedou a sua serena grandeza ?
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