terça-feira, 6 de novembro de 2012

VW





A Filosofia ensina que a negação pode ser determinante. É algo mais do que a negação da possibilidade. A privação tem consequências que não podemos antecipar ou avaliar com acerto. O livro não escrito é o que poderia ter feito a diferença. Que nos poderia ter permitido falhar melhor. Ou talvez não.  
George Steiner

Tornei-me um estranho para mim próprio, e nem na minha alma encontro respostas.
S. Agostinho


Tinha um rosto de jovem Parca (M. Yourcenar dixit), um rosto (digo eu) onde se expressavam a complexidade e a fragilidade da vida. Ninguém como Virginia Woolf conferiu tanto sentido à tese de Sartre segundo a qual "toda a técnica romanesca remete para uma metafísica". Era ela que não acreditava em relógios, no tempo mensurável e divisível em parcelas fixas e estanques capazes de balizar uma vida humana, decompondo-a em instantes definidos e definíveis; sabia que o tempo que conta é o subjectivo, que a personalidade individual se faz e refaz como as vagas (já lá vamos), não podendo ser narrada do exterior, mas sim a partir de um interior que é ele mesmo indeterminado, indefinido, em constante mutação, um pouco à maneira de Goethe descobrindo que a forma é metamorfose.
O corolário deste modo de pensar a escrita literária surge-nos sob a forma de personagens em silhueta, fantasmas absortos no nevoeiro, despojados de particularidades exteriores e ricos em percepções, imagens e recordações e atinge a plenitude no romance (?) "As Vagas" que culminam uma arte essencialmente elíptica, anti-realista e baseada em constantes metamorfoses dos conteúdos emocionais da consciência, libertando-se progressivamente da tirania dos factos e das formas a fim de surpreende no instante mesmo em que ocorre o escoar-se no tempo dessa coisa perecível a que chamamos vida. Essa mesma vida não passa, afinal, de uma manta de retalhos, de peças de empréstimo, de vagas sucessivas de encontros e memórias, miragens, quimeras, ilusões, sonhos, de destroços e de momentos fugidios de felicidade e de outros momentos, ainda mais ilusórios e fugidios de liberdade, sendo o romance um reflexo fiel e necessário dessa incoerência e do caos que habita aquilo a que chamamos consciência. A obra dessa escritora elusiva e frágil inunda-nos constantemente com as mesmas matérias, com as exactas substâncias de que a vida é feita: sensações, o volume confuso das impressões que somos, a fim de captar por meio de clarões isolados e descontínuos a realidade contínua (ou a continuidade que julgamos constituir o núcleo duro da realidade, como se a realidade fosse real).
Muitas vezes a técnica revolucionária de Virginia Woolf faz-me lembrar o cinema, como se estivéssemos no domínio puro daquilo que se designa por "camera eye"; ora faz deslizar o aparelho de captar imagens ao longo do seu eixo, ora o desloca do interior para o exterior, exactamente como sucede com os "travellings", as panorâmicas e outros movimentos de câmara, subtis e arrojados que são o segredo de alguns (muito poucos) grandes mestres da arte cinematográfica. A estes movimentos faz suceder efeitos de montagem, encadeamentos fluidos, sucessões de movimentos em frente e de retorno, elipses (comparáveis às do grande mestre delas que foi Kenji Mizoguchi), sucessão e escala de planos nos campos da consciência como, no cinema, se sucedem os planos no espaço e no tempo. O resultado é uma multiplicação até ao infinito de pontos de vista distintos, sucessivas perspectivas de imagens sobre uma mesma realidade, visando aumentar o conhecimento dessa mesma realidade e o aprofundamento das sensações que provoca. Como se percebe, Woolf nunca quis explicar nem descrever fosse o que fosse: deu a ver, explorou, fez sentir, submergiu os leitores nas correntes de consciência, abdicou de forçar o objecto tornando-o domesticado e acessível. Com ela, por causa dela, o artista já não o semi-deus que tudo observa e tudo compreende; a partir dela é um de nós, mergulhados nas mesmas incertezas, nos mesmos temores, na mesma e exacta indeterminação e nos mesmos instantes breves de felicidade.
Para descrever um mundo em pedaços (o seu e o nosso, hoje), inventou uma linguagem em separação, esquartejada  e uma técnica que procede por saltos, parcelada. As grandes obras literárias são assim : não basta que nos mostrem que somos apenas um mosaico de impressões, uma tábua rasa na qual se vêm inscrever os fenómenos que nos são exteriores e que nos dilaceram ou nos proporcionam alegria, não basta que nos digam que somos isso num tempo incaptável, arbitrariamente dispostos num espaço que nos foi dado habitar, mal ou bem: é preciso mostrá-lo, é necessário ver as imagens sucederem-se às imagens, os instantes aos instantes, é preciso que as frases nos dilacerem, nos puxem para o abismo, nos partam o coração, que a pontuação nos arranque a pele e que, por vezes, não ouçamos mais que uma sequência de palavras descosidas, desgarradas, ensanguentadas e uivadas ao vento. Mas ao mesmo tempo que nos mostra que somos vítimas (muito pouco inocentes) do tempo que passa e nos destrói, das sensações violentas e imprevistas que nos isolam dos outros, dos acontecimentos e dos acasos que nos vão desumanizando, a linguagem ambivalente de Virginia Woolf, a ausência de estruturas seguras naquilo que escreveu, mostra-nos esse outro tempo que goteja lentamente dentro de nós e que, longe de nos destruir, nos fortalece provisoriamente contra o caos circundante.
Mas não chega a ocultar-nos que as vagas atiram contra a praia os destroços do que fomos - miragens, quimeras, sonhos ilusões - e os cadáveres lívidos do que somos. Como dizia outro grande escritor. "entre a dor e o nada, prefiro a dor".

1 comentário:

Artur Guilherme Carvalho disse...

Irmão,
Tomei a liberdade que acrecscentar uma imagem da VW a acompanhar o teu texto. Se discordares diz que eu apago. Abraço