António Lobo Antunes
2012
Os livros do Mestre são bilhetes
deixados na beira de um penhasco que nos convidam a saltar, não têm meio-termo.
Ou vamos ou ficamos do lado de cá a ver o que poderia ter sido uma boa leitura.
A opção do salto é uma vertigem, um bailado entre o medo e a ansiedade, uma
entrada a pique num universo que nos é proposto, sem rede nem protecções.
Sabemos como entramos naquele mar que nos convida com a certeza de que nunca
sairemos dali da mesma maneira. Uma parte de nós fica para trás enquanto um
outro tanto acaba por ser adquirido na viagem. Os livros do Mestre não são para
ler, com a pontuação arrumada, as ideias lavadas e a narrativa alinhada por
pesos e alturas. Os livros do Mestre são autênticas aventuras dos sentidos que
nos atropelam em cada frase estilhaçada, em cada pensamento intermitente, em
cada personagem que começa a falar e pára de repente para continuar mais
adiante, indiferente ao tempo a que se refere e a quem lhe termine a frase. Mas
no ambiente caótico deste mar de escrita, tal como no mar real, o truque é
abandonarmo-nos às vagas, deixar que a corrente nos leve, apreciar essa
vertigem de estar num mundo que não dominamos e fazer a viagem. Essencialmente
“sentir”, permitir que as células do romance se confundam com as nossas, ver no
silêncio o desenho do diálogo do leitor com os outros personagens.
Descendente do (para mim) melhor
romance da obra do Mestre (“Explicação dos Pássaros”), este “Não É Meia-noite
Quem Quer” apresenta-se num fim-de-semana de despedida de uma mulher que visita
a casa de férias da sua infância antes de se suicidar. Em ambos os romances
estamos perante a morte anunciada, suicida ou não, do personagem central. Se no
primeiro caso se vai desenrolando a desarrumação total da vida presente do
homem, neste é a recordação da vida que se arruma na cabeça de uma mulher com
50/60 anos. A memória de uma família em que todos sofrem para dentro, em que os
gestos de carinho são intenções que ficam suspensas no ar, quatro filhos, um pai
bêbado e uma mãe austera, um espaço familiar em que o pudor de demonstrar o
afecto é tão grande que ninguém acaba por perceber bem, sequer, se alguém gosta
de alguém. As memórias de uma mulher que carrega consigo a dor da morte do
irmão que se recusou ir para a guerra e se atirou do penhasco, do outro que
voltou da guerra e se afastou da família, do surdo, da mãe adultera e
disciplinadora que a segurou ao colo uma vez, do pai que se escondia na
dispensa no meio das garrafas, de um marido que foi mais acidental do que
passional, das amigas com que partilhou afectos. E mais importante para quem
recorda antes de morrer, não é saber se foi feliz, não é pescar remorsos,
rancores, culpas, maravilhas por explorar. Apenas fazer correr o filme de uma
vida, repetir cenas, frases e gestos e encontrar finalmente a estação da
aceitação das coisas na sua realidade mais óbvia. Não se trata de perdoar nem
muito menos aceitar o que quer que seja, mas fazer do registo um exercício de
testemunho existencial. Esta foi a nossa vida, vamos morrer a seguir, uma coisa
e de pois outra sem etiquetas nem grandes pensamentos para embrulho. Assim é a
existência, esse fenómeno pouco seguro, pouco dado a certezas e justificações,
essa simples vivência, objecto de registo e indiferença, de memória e tentativa
de compreensão.
“Não É Meia-noite Quem Quer” é
mais um momento de paixão e vertigem em que as páginas se percorrem sem cansaço
num mar de memórias de uma mulher que tenta fazer as últimas arrumações do seu
passado e, desse modo, o registo da sua existência. Ficamos amigos dela sem
reservas a partir do momento em que a sua história se torna a nossa história,
em que a sua respiração nos devolve o ar, em que o seu coração nos faz circular
o sangue das nossas veias. Porque a Humanidade é apenas uma.
Obrigado Mestre.
Artur
2 comentários:
Excelente texto, mestre Artur! O Mestre nada nos dá sem que nos tire algo também. Ou que nos corte, em vez de tirar: parece que só respiramos ao fim de cada capítulo, que não aguentamos mais de incómodo, que algo nos aperta até percebermos que muito do que ali se passa também se passa connosco. Por isso me ficam na cabeça tantas expressões que já estavam dentro dela sem saber. Para mim é dos melhores dos últimos anos.
Carlos,
Sempre com o tio a caminho do estádio e a comer bifanas literárias no fim do jogo. Abraço
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