(*)
Ao Coronel Farinha Tavares
A vida militar é composta por longas páginas de medo e solidão, coragem e sacrifício. Ao se entregar à carreira das armas o indivíduo está a abdicar de uma série de componentes habituais da vida civil que nunca mais voltará a recuperar. Digamos, de uma forma geral, que a maior perda será a da conjuntura doméstica por troca com um colectivo permanente e omnipresente. Afastado da família, dos amigos, dos seus livros, da intimidade do seu sono, o indivíduo passará a dividir toda a sua realidade com outros indivíduos adquirindo nessa partilha uma camaradagem e uma solidariedade que nunca mais esquecerá ao longo da vida.Em cenário de guerra, a Vida e a Morte passarão a fazer parte da ementa diária. Num colégio interno dirigido por militares o ambiente não será tão radical embora as semelhanças sejam abundantes. Ninguém está em guerra mas o sono divide-se numa camarata para mais de 60 tipos, o duche diário é também um acto colectivo, o afastamento dos familiares, dos amigos, do espaço doméstico, essas são as principais semelhanças. A diferença é que neste caso ainda não somos homens e vamos de encontro a esta realidade com 10 anos. Aprendendo a lidar com o medo e com a solidão desde muito cedo, entre alunos e militares fica criado o espaço propício à criação narrativa. As histórias circulam com pontas soltas, recuperam partes de lenda, inventam heróis ou paspalhos ao sabor das simpatias. Em suma, as histórias são um dos elementos fundamentais da vida de homens solitários habituados a conviver com o medo. Ou, dizendo de outro modo, os guerreiros são feitos de medo, coragem, solidão, vida, morte e...de histórias.
Hoje lembrei-me de um professor mítico que tive por mais do que uma vez, militar, antigo aluno do colégio, e que leccionava juntamente com um irmão dele. Por alunos mais velhos vim a saber que as suas alcunhas (elemento fundamental indentificativo destes ambientes) eram o PV 1 e o PV2, alcunhas essas que nunca cheguei a perceber se já vinham do seu tempo de alunos ou se teriam sido colocadas no tempo de professores. E quanto ao PV, a doutrina dividia-se. Havia quem garantisse tratar-se da designação de um modelo de avião antigo, enquanto que outros, de forma mais prosaica, atribuíam as iniciais a "Pele Vermelha" em homenagem ao mais velho que tinha um rosto permanentemente ruborizado, vermelhinho. O irmão, por herança, levou com a segunda designação. Num jantar com ex-alunos mais novos fiquei a saber que no tempo deles o PV 2 era conhecido pelo "Pôdre", por razões que adiante veremos. E é precisamente do PV 2 que me lembro lindamente, sempre pelas melhores e mais caricatas razões.Tratava-se do coronel Farinha Tavares apesar de nunca o ter visto de uniforme. Deu-nos aulas de geografia e de desenho. No 4º ano (hoje 8º)as nossas salas de aula ficavam num primeiro andar alto na parte traseira dos claustros com vista para o páteo do Desenho. O F.Tavares conseguia fumar cinco e seis cigarros no espaço de 50 minutos. Umas vezes alinhava as beatas na parte da frente da secretária (daí conseguirmos contá-las), outras vezes atirava-as pela janela fora. A seguir aproximava-se da janela e espreitava lá para baixo a ver se não tinha acertado em ninguém. O tabaco era portanto uma parte essencial daquele homem, facto facilmente verificável na estratificação cromática do seu imponente bigode. Nada mais que três camadas a começar, de baixo para cima, amarelo, cinzento e branco. O Farinha Tavares, ou PV2, era indisssociável do cigarro.
Outra característica do Farinha Tavares era a famosa interjeição com que sublinhava o seu discurso. Talvez como elemento auxiliar de memória, ou por uma questão de pontuação, de tanto em tanto tempo a frase famosa era proferida, começando como uma interrogação de chamada à atenção da classe e seguida por um acompanhamento solidário. A frase era : "Hã? Estás a perceber?" Mas este "refrão" sofria mutações ao longo da aula. Passava rapidamente a "Hã? Tás a ceber" e terminava em "Hã tááás a ssser?" Com vários "s" para realçar a sonoridade sibilina da pronúncia... Autênticas vozes de comando para a ordem unida da marcha dos rios e das cordilheiras, dos oceanos e continentes. É claro que, como no teatro, o estribilho (agora o "soundbyte") pegava e no intervalo era ouvir o eco da frase na clandestinidade do cigarrinho fumado nas casas de banho.
Uma última história do Farinha Tavares tem a ver com um uso comum no colégio. Todos os expedientes eram bons para pôr o professor a contar histórias e atrasar a matéria. Então na qualidade de antigo aluno era muito mais fácil. Bastava perguntar-lhe um ou outro pormenor do tempo dele que havia conversa para a manhã toda. Mas infelizmente com o Farinha Tavares esse capítulo já se tinha esgotado, ou melhor, ele já sabia do "que é que a casa gasta...hã, tááás a ssser?" Até que um dia houve um boateiro de serviço que descobriu que ele tinha estado preso na India. A meio da aula com o barco em andamento, quando a beata acabava de voar janela fora e ele espreitava, a pergunta saltou como se nada fôsse. Apanhado de surpresa o Farinha Tavares não teve tempo de se furtar. "Efectivamente...efectivamente, assim foi, é como dizes,rapaz...tááás a ssser?" Logo a seguir, antes que ele se recompusesse saltou a segunda questão. O cativeiro deveria ter sido uma experiência terrível. O Farinha Tavares fez uma pausa breve como que a recordar-se daqueles 12/14 meses num campo de prisioneiros na India. Depois respondeu quase comovido. "Foi uma tragédia, estive à beira do desespêro, hã? Tás a ssser. Diria mesmo mais: foi uma enorme tragédia. Eu estive prestes a enlouquecer porque estava à beira do colapso...hã? Tás a ssser?" E os nossos olhos cada vez se arregalavam mais. Á nossa frente estava uma lenda viva de uma das páginas mais recentes da nossa história. Ele olhava-nos por trás dos óculos e por cima do bigode que quase tremia e explicava a sua odisseia. "É que de repente eu estava sem mantimentos...isto é, sem tabaco, e então eram dois problemas enormes...Hã, tááás a ssser? Primeiro não tinha tabaco, e segundo, não fazia a mínima ideia como é que havia de comunicar com o indígena que nos guardava para me arranjar cigarros. Foi praticamente uma tragédia. Mas a certa altura, por gestos o indígena finalmente percebeu o que é que se pretendia e então...Hã? Tááás a ssser? O tipo lá foi lá dentro e voltou com uma zurrapa parecida com barbas de milho. Tá claro que me soube como um charuto cubano. Hã? Táááás a ssser? Tal era o estado de carência em que me encontrava. O cativeiro traz-me estas recordações terríveis. Hã? Tááás a ssser?"
O seu à vontade, a sua forma de estar de guerreiro do Império, o seu sentido de humor, a amizade que nos tinha faziam do Coronel Farinha Tavares uma lenda viva que se instalou definitivamente no nosso panteão colectivo. Eu, nunca mais o esqueci. "Hã? Tááás a ssser?"
Artur (*) Imagens do livro "A Queda da India Portuguesa" - Crónicas da invasão e do cativeiro -. Carlos Alexandre de Morais Ed. Estampa Lisboa, 1995
9 comentários:
O PV2 também era conhecido como "Alcatrão"!
Eles eram ex-pilões
António, mais uma alcunha para o registo. Obrigado.
cai de costas, os PVs nunca foram pilões. Talvez alguém da familia do Pilão tivesse alcunhas parecidas. Estes, definitivamente, NÃO! Eu conheci-os bem.
477, talvez Colegiais de alma, os Farinha Tavares eram efectivamente ex-pilões, confia no que te digo - conheci-os tão bem quanto tu.
Abraço
Reconheço o empolgamento, ou o conceito adquirido e dado como certo uma vida inteira. Efectivamente os Farinha Tavares não constam nos ficheiros. Reconheço o meu erro.
Não pude deixar de gargalhar ao ler o pueril comentário daquele ex-aluno do Colégio Militar que, induzido em erro por outro colega de turma, acrescentou um novo capítulo à vida do coronel José Farinha Tavares. A vida deste Oficial do Exército, altamente penalizada pelo 25 de Abril, recheada de episódios soberbos nos Açores (no decurso da II Guerra Mundial), em Timor, em Angola e em Moçambique, dava efectivamente um livro. Ainda hoje é recordado, com sentida e genuína saudade, por quantos serviram, Além-Mar, sob as suas ordens. No Norte de Angola, nos alvores do terrorismo, em que a aeronave de observação aérea em que seguia se despenhou, foi dado como morto. Quando chegou ao Colégio Militar, na década de 50, ido de Caçadores 5, unidade de elite do regime vigente, com os galões de capitão sobre os ombros, tomou a alcunha de Pele Vermelha 2 (abreviada como PV").
O motivo de tal alcunha, uma entre tantas que receberia nos velhos claustros da Luz, ficou a dever-se ao facto do seu irmão mais novo, também ele capitão saído de Caçadores 5, a convite do brigadeiro director do Colégio Militar, ser o Pele Vermelha. Existindo então dois irmãos com o mesmo apelido, situação que gerava alguma confusão, tornava-se necessário distingui-los. O espírito crítico dos alunos logo encontraram a fórmula mágica de o fazer e, se existia já o PV o irmão, mesmo que fisicamente diferente, passaria a ser o PV2.
Porquê Pele Vermelha? Alguma parecença com os índios que povoavam o imaginário dos jovens daquele tempo? O então capitão E. Farinha Tavares, louro, de olhos azuis e pele extremamente alva, de fisionomia germânica, tinha os vasos sanguíneos da cara sempre visíveis. A alcunha que lhe fora dada pelos alunos tinha sentido e apurado sentido crítico. Não sendo maldosa, resultante apenas de uma particularidade física que dava ao alcunhado um ar prussiano, sob um porte garboso, manteve-se ao longo dos anos. Aliás, este Oficial do Exército, que serviu durante três décadas no Colégio Militar, em distintos períodos da sua vida, já que as comissões Além-Mar obrigavam a interrupções constantes, teve outras alcunhas (o Prussiano, devido ao seu porte, e o Príncipe, por idêntico motivo).
Quanto ao irmão, de fisionomia completamente diversa, foi acumulando alcunhas pelos cursos que se iam sucedendo. Uma delas, Búfalo Bill, adveio-lhe do facto de ser parecido com o herói norte-americano e, tal como aquele, de ser um bom atirador.
Com várias comissões de serviço Além-Mar, mormente nos Açores, no decurso da II Guerra Mundial, a que se seguiram Timor, Angola e Moçambique, estas últimas em teatros de operação, adquiriu o pernicioso vício de fumar. Nunca esteve na Índia, porém, pelo que me deleitei a ler a história onde lhe é imputada a comissão na costa do Malabar. O aluno gozão estava, na verdade, a ser gozado por um Oficial do Exército que dera provas admiráveis de humor.
Os dois irmãos, ao que pude reter na memória, tornaram-se figuras lendárias no Colégio Militar pelo seu aprumo e, também, pelo seu amor aos claustros da Luz. Como militares, comportaram-se brilhantemente Além-Mar e, tendo ambos entrado em combate, um em Angola, o outro em Moçambique, em muito dignificaram a instituição castrense. Infelizmente, o golpe pretoriano de 1974 terminou com as suas vidas profissionais. Para trás deixaram, porém, um nome que ainda hoje é recordado, com acrisolado carinho, por quantos serviram sob as suas ordens.
A propósito, não foram alunos dos Pupilos nem, tão pouco, alguma vez ali prestaram serviço. Leituras rápidas, comentários escutados de revés, certamente estarão na base de informações incorrectas.
Mário Silva
Ainda está para se fazer a história dos Coroneis Farinha Tavares no Colégio Militar. Gerações e gerações de ex-alunos muito devem àqueles dois distintos oficiais que, consequência do seu aprumo, amor pátrio e pedagogia, altearam de sobremaneira os velhos claustros da Luz e, por extensão, ainstituição castrense.
Prestemos-lhes uma homenagem sentida e sincera e, também, louvemos a sua acção em combate nos teatros de operações africanos. Souberam cumprir Portugal e honrar o juramento de bandeira feito na então Escola do Exército.
Farinha Tavares? Do melhor que, em termos professorais, passou pelo Colégio Militar. Brilhantes! Para além de terem sido militares aprumados e de grande valia em África. Deviam ter um pavilhão com o seu nome e ser retirados do pó do esquecimento.
Enviar um comentário