sexta-feira, 23 de novembro de 2012

AS MULHERES DE KAFKA



                                                                  Franz Kafka
O registo conhecido do universo feminino na vida de Franz Kafka ajuda-nos a enquadrar numa dimensão mais abrangente paradoxos e grandezas de uma obra singular que acabará por marcar toda a Literatura do século XX. Temos de um lado Milena Jesenska e uma breve relação de quatro dias, e depois Dora Dyamant ,com quem passará os últimos tempos da sua vida.
Kafka nasce e vive a maior parte do tempo da sua vida em Praga, sendo um pequeno judeu burguês, frágil e educado, contemporâneo de duas tradições em decadência.
Por um lado a austríaca, que havia feito de Praga o seu segundo foco espiritual e antiga capital do império. Por outro lado a tradição judaica, ponto de fricção entre um judaísmo ocidentalizado e germanizado, afastado das suas origens rurais e religiosas, e um judaísmo campestre, de idioma yidish, de grandes e profundas riquezas religiosas conservadas com orgulho da miséria material em que frequentemente florescem estes valores. Em "Carta ao Pai" ataca ferozmente a figura masculina que domina a sua infância e adolescência acusando-a de lhe haver mostrado o lado falso e superficial do judaísmo. Nunca foi marxista nem freudiano e a sua versão do judaísmo pouco ou nada tinha de comum com a dos seus correlegionários de 1900. Acima de tudo, Kafka sentia-se profundamente ferido com as explosões do século (I Guerra Mundial, revolução bolchevique na Rússia, miséria do pós-guerra, decadência dos valores), desenvolvendo em paralelo uma intensa necessidade de compreender, amar, redimir... Uma busca angustiosa e sofrida resultante do fracasso da política da ciência e da filosofia do séc. XIX.

Entre o judaismo e o cristianismo houve um fosso que Kafka nunca conseguiu ultrapassar. Esse salto que ficou por dar entre o Antigo e o Novo Testamento, essa timidez ontológica é representada n' "O Castelo". O " agrimensor" nunca chegará a conhecer o conde Westwest e também nunca saberá qual era a missão para que fora chamado, se é que alguém o tinha mandado vir ao castelo. Neste romance, o elemento social e o elemento político não são mais do que estados visíveis do elemento religioso. O que busca o "agrimensor", dentro dos limites do visível, sua única relação com a vida, é uma segurança metafísica. Como qualquer ser humano deseja saber o "porquê" da sua presença e, se fôr possível, conhecer o dono do seu destino. O conde Westwest, debaixo de cuja sombra vive e prospera todo o povo, é pois o inacessível. É o imperador, mas é Deus igualmente. E é também o pai de Kafka. Tanto em "O Castelo" como n' "O Processo", todos os personagens são funcionários típicos da gigantesca máquina burocrática da monarquia austríaca. Os personagens centrais, José K. e K. são cidadãos do império, ambos cristãos como quase todas as personagens de Kafka. Em "O Processo", vamos assistir à morte de um burocrata no meio da  burocracia e dos seus métodos que, desta maneira, se mata a si mesma. O homem que não quer deixar-se conduzir pela fluidez do tempo e da história, limita -se a congelar nos seus hábitos de burocrata. Morrerá como um cão. É o ciclo completo, imperturbável como um silogismo de todo o sistema fechado, condenado por si mesmo, matando os seus, sem se preocupar que estas mortes esboçam no ar da história a silhueta de um suicídio.

O drama de Kafka não é o conflito com o pai, ou melhor, o conflito com o pai é o conflito com Deus (do Antigo Testamento) não havendo aqui lugar para grelhas freudianas limitadoras. Enquanto que associado à figura paterna, para além de um self made man vitorioso, encontram-se os valores da responsabilidade. O que personificava o Pai era a Lei , as limitações impostas pela Família, pela Escola, o Dever, o Trabalho, o Amor. O que assusta Kafka no amor não é o acto em si, muito menos estar ao pé de uma mulher, mas os laços que isso representa enquanto responsabilidade familiar. Tudo o que é limitação o perturba.



"Tudo o que não seja literatura me aborrece e eu detesto, pois distrai-me e faz-me mal, ainda que sejam só imaginações minhas"



Kafka nunca quis ao seu lado uma presença permanente na medida em que a sua vida era a literatura. A maior parte dos escritores procuraram ansiosamente a mulher, não só para a retratar nas suas obras, como para viver com ela uma parte importante das suas vidas. Esta perplexidade permanente entre o literato que se quer isolar e o amante que quer e não quer, que tem medo do matrimónio, ou seja à Lei, ou seja ao Pai, e que transforma os últimos anos de Kafka num verdadeiro inferno de caprichos e aborrecimentos é impressionante. Típico de uma época decadente. É caso para perguntar: Por acaso conheceu Kafka o amor total, a entrega complicada e sem reservas da fusão de corpos e almas?

                                                            Milena Jesenska
Milena Jesenska era uma checa, filha de um professor da Faculdade de Medicina de Praga, casada com um judeu da boémia vienense. Conheceu Kafka porque quis traduzir textos seus para checo. Típica heroína de romances expressionistas, Milena dominou o escritor desde a primeira hora. Vestia como Isadora Duncan, trajes amplos que flutuavam, à maneira antiga, em torno do seu corpo, era de ideias livres, atravessava a nado, de noite, o rio Moldava, passava tardes inteiras nos ateliers dos pintores, tinha relações amorosas com eles, era o modelo de uma nova geração feminina. Tinha vinte anos e Kafka trinta e nove. Passam quatro dias juntos em Viena. Milena cura-o dos medos que o escritor tinha (de si próprio, da angústia que o impedia de se entregar inteiramente no acto de amar; da sua doença, a tuberculose). Dias depois Milena divorcia-se mas não se chegou a juntar com o seu novo amante.

                                                             Dora Dymant
A única mulher com que Kafka convive durante meses é Dora Dymant, que conhece em 1923 e com quem passará os últimos instantes da sua vida no sanatório de Kierling, perto de Viena, onde o escritor virá a morrer a 3 de Julho de 1924 sem se ter casado. Numa carta escrita ao seu grande amigo Max Brod, Kafka confessa que Dora lhe permitiu libertar-se das forças demoníacas que o atormentavam, nos dias em que viveu com ela numa felicidade quase conjugal, referindo-se a uma curta temporada em que alugaram uma casa perto de Berlim em 1923. Que forças demoníacas seriam essas que o impossibilitavam de amar mas que ao mesmo tempo lhe desenvolviam um desejo inato de o fazer e de ser retribuído? Algum limite se interpôs entre este homem e os seus, entre a possibilidade de amar e o amor, facto que se reflecte de forma clara no seu trabalho de romancista, onde a mulher tem um papel bastante reduzido.

Uma análise freudiana está completamente afastada na medida em que Kafka nunca quis matar o seu Pai para que este lhe deixasse livre trânsito para o amor da mãe. Não existe nenhum indicador retorcido nas relações do escritor com a sua família, pais e irmãs. Tudo decorre dentro da normalidade. A sua líbido é de uma outra matriz e Édipo não tem lugar neste drama. O drama é essencialmente existencial e o seu curto romance "Metamorfose" sintetiza-o claramente. Gregório Samsa, alter ego do autor, torna-se um animal no momento em que se consciecializa da sua solidão. O solitário é um ser anormal num século em que toda a gente vive misturada com toda a gente. O romantismo tem em Kafka a a sua última hora de actualidade, não já na sua obra mas na sua vida. Mas além do romantismo Kafka experimenta a solidão enquanto impossibilidade de amar, acrescida da angústia que se desenvolve em consequência desse facto. A máxima necessidade de ser livre, conjugada com a máxima vontade de amor pela Humanidade acabam por se combinar numa equação impossível de resolver.

Artur



2 comentários:

Clarice disse...

Há equações assim... isso é tão humano...

Kafka tinha um olhar triste, mas olha que as raparigas também não lhe ficavam atrás...:)

Artur Guilherme Carvalho disse...

Por isso é que se encantou com elas. Bjs Clarice