quarta-feira, 30 de maio de 2012

UM HERÓI MALDITO






SAGAL (UM HERÓI FEITO EM ÁFRICA)



António Brito



Porto Editora, 2012



Emiliano Salgado é uma espécie de herói maldito, um ser que ninguém quer, e que no entanto teima em viver, em percorrer o seu caminho animado pela dívida que tem sobre si próprio: a sobrevivência. Odeia sinos e adora correr, sendo o exercício da corrida a metáfora perfeita da sua existência. Na guerra colonial adquire a alcunha de “Sagal”, ou de “Leão do Sagal”, na sequência de uma excelente prestação em combate em terras do mesmo nome. Sagal nasceu, ou melhor, foi abandonado num bordel da Mouraria, onde cresceu os primeiros anos da sua vida entre mulheres de má reputação, clientes apressados, ranger de camas, gemidos e sujidade. Vítima de uma denúncia, numa Sexta-feira Santa a polícia veio buscá-lo e foi internado na Casa Pia. Tinha seis anos. Daí em diante, a sua vida é uma gigantesca corrida contra as adversidades, a violência, o estatuto de vítima, o mundo em geral. Ao longo da sua corrida matinal, Sagal vai relembrando o passado, interrogando-se se corre para recordar ou para esquecer. Enquanto corre vai desfiando a sua vida, que foi tudo menos monótona.

Com “Sagal”, António Brito recupera o tema recorrente na sua obra, a guerra colonial, para desenhar um homem que viveu corajosamente e venceu todas as possibilidades que convergiam para a sua destruição eminente. Da Casa Pia para a marginalidade das ruas em Lisboa, da fuga à policia para os pára-quedistas, do final da guerra colonial para a África do Sul e para o seu contrato como mercenário nas manobras no Sul de Angola, e finalmente do continente africano de volta para Lisboa. No fundo trata-se de um aventureiro dos tempos modernos, um homem empurrado pelos acontecimentos e pelas circunstâncias, cuja única orientação é a de correr para a frente, sem destino nem paragem. Não por escolha própria mas pela inevitabilidade dos acontecimentos.

A originalidade deste romance de aventuras, para além da verosimilhança com a História (o autor foi combatente pára-quedista em Moçambique na guerra colonial), reside principalmente na forma como se desenham os cenários narrativos, isto é, pela maneira como são introduzidos ao longo do romance factos, histórias e passagens da actualidade, cenários esses atravessados pelo protagonista. É o caso da organização da rede masculina de prostituição na Casa Pia, os momentos caóticos que se seguem entre o 25 de Abril e a independência da ex-colónias, as manobras do exército sul-africano na Namíbia e no Sul de Angola, o ambiente do processo revolucionário em Portugal, em suma, as manchetes dos jornais da época. Sagal vive as décadas de 70 e 80 do século passado sem preocupações ideológicas e, em virtude das suas capacidades tenta dar corpo à sua ideia de justiça, de equilíbrio dentro do caos social. Sem grandes problemas de consciência nem referências morais. Em muitas situações, um personagem com que muitos se identificarão, admirando as suas proezas, não tendo a coragem de as realizar. Pelo seu percurso, Sagal identifica o lado cruel e desumano daqueles com quem se cruza, os oportunistas, os prepotentes, etc. A Justiça é um valor pessoal que defende e faz valer ao seu critério.

De acordo com uma entrevista do autor ao “Jornal de Letras”, Sagal poderá ser o início de uma série de livros onde o herói maldito continuará a agir no fio da navalha entre o legal e o ilegal. Umas vezes colaborando com a policia, outras por conta própria. E sempre em volta dos acontecimentos da ordem do dia, nacionais ou internacionais tratados ficcionalmente. Para já é um bom começo, uma excelente proposta de entretenimento a fazer lembrar outros heróis malditos como Corto Maltese ou Fernão Mendes Pinto. Ficamos à espera dos próximos episódios da vida de Sagal.



Artur

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