SAGAL (UM HERÓI FEITO EM ÁFRICA)
António Brito
Porto Editora, 2012
Emiliano Salgado é uma espécie de
herói maldito, um ser que ninguém quer, e que no entanto teima em viver, em
percorrer o seu caminho animado pela dívida que tem sobre si próprio: a
sobrevivência. Odeia sinos e adora correr, sendo o exercício da corrida a
metáfora perfeita da sua existência. Na guerra colonial adquire a alcunha de
“Sagal”, ou de “Leão do Sagal”, na sequência de uma excelente prestação em
combate em terras do mesmo nome. Sagal nasceu, ou melhor, foi abandonado num
bordel da Mouraria, onde cresceu os primeiros anos da sua vida entre mulheres
de má reputação, clientes apressados, ranger de camas, gemidos e sujidade.
Vítima de uma denúncia, numa Sexta-feira Santa a polícia veio buscá-lo e foi
internado na Casa Pia. Tinha seis anos. Daí em diante, a sua vida é uma
gigantesca corrida contra as adversidades, a violência, o estatuto de vítima, o
mundo em geral. Ao
longo da sua corrida matinal, Sagal vai relembrando o passado, interrogando-se
se corre para recordar ou para esquecer. Enquanto corre vai desfiando a sua
vida, que foi tudo menos monótona.
Com “Sagal”, António Brito
recupera o tema recorrente na sua obra, a guerra colonial, para desenhar um
homem que viveu corajosamente e venceu todas as possibilidades que convergiam
para a sua destruição eminente. Da Casa Pia para a marginalidade das ruas em
Lisboa, da fuga à policia para os pára-quedistas, do final da guerra colonial
para a África do Sul e para o seu contrato como mercenário nas manobras no Sul
de Angola, e finalmente do continente africano de volta para Lisboa. No fundo
trata-se de um aventureiro dos tempos modernos, um homem empurrado pelos
acontecimentos e pelas circunstâncias, cuja única orientação é a de correr para
a frente, sem destino nem paragem. Não por escolha própria mas pela
inevitabilidade dos acontecimentos.
A originalidade deste romance de
aventuras, para além da verosimilhança com a História (o autor foi combatente
pára-quedista em Moçambique na guerra colonial), reside principalmente na forma
como se desenham os cenários narrativos, isto é, pela maneira como são
introduzidos ao longo do romance factos, histórias e passagens da actualidade,
cenários esses atravessados pelo protagonista. É o caso da organização da rede
masculina de prostituição na Casa Pia, os momentos caóticos que se seguem entre
o 25 de Abril e a independência da ex-colónias, as manobras do exército
sul-africano na Namíbia e no Sul de Angola, o ambiente do processo revolucionário
em Portugal, em suma, as manchetes dos jornais da época. Sagal vive as décadas
de 70 e 80 do século passado sem preocupações ideológicas e, em virtude das
suas capacidades tenta dar corpo à sua ideia de justiça, de equilíbrio dentro
do caos social. Sem grandes problemas de consciência nem referências morais. Em
muitas situações, um personagem com que muitos se identificarão, admirando as
suas proezas, não tendo a coragem de as realizar. Pelo seu percurso, Sagal
identifica o lado cruel e desumano daqueles com quem se cruza, os oportunistas,
os prepotentes, etc. A Justiça é um valor pessoal que defende e faz valer ao
seu critério.
De acordo com uma entrevista do
autor ao “Jornal de Letras”, Sagal poderá ser o início de uma série de livros
onde o herói maldito continuará a agir no fio da navalha entre o legal e o
ilegal. Umas vezes colaborando com a policia, outras por conta própria. E
sempre em volta dos acontecimentos da ordem do dia, nacionais ou internacionais
tratados ficcionalmente. Para já é um bom começo, uma excelente proposta de
entretenimento a fazer lembrar outros heróis malditos como Corto Maltese ou
Fernão Mendes Pinto. Ficamos à espera dos próximos episódios da vida de Sagal.
Artur
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