O portão que se fecha atrás de
mim geme mais alto que o vento, como se estivesse a competir com ele. Geme e a
seguir rebenta em vibração metálica, a protestar contra a minha falta de jeito.
Os passos arrastam-se até à casa em movimento lento, lamentando cansaços do
dia. Só quando finalmente me sento em frente à lareira a debicar um copo de
qualquer coisa é que me consigo ouvir. Só quando tudo parece estar parado é que
a minha imagem se consegue tornar nítida. No mais sagrado silêncio em que
consigo pronunciar as palavras que posso ouvir, na mais pura tela onde a minha
silhueta se desloca em movimento traduzível, em linguagem corporal perceptível
ao espectador que sou eu. E o que eu digo, muitas vezes, aquilo que consigo
dizer e que ouço perfeitamente, pode ser assustador. Pode atirar-me para longe,
esmagar-me sem piedade, deixar-me cair das alturas. Fala-me da descompensação,
fala-me da factura a pagar pelo grau de consciência, das piadas de que ninguém
se consegue rir, do imposto devido à entrega absoluta e incondicional da
actividade criativa. Essa actividade tão estranha e tão intensa, esse desafio tão
desejável, esse insuflar de sentidos, essa força que nos ocupa todo o sentido
da vida mas que nos suga a alma. Recorda-me conversa antiga com escritor de
outra geração: “Então o menino quer ser escritor. Escolheu uma cruz bem pesada…”
Sim, no silêncio consigo ouvir-me, quando não estou a escrever. Nessa altura não
penso, só ouço os fantasmas que se aproximam de mim e insistem em contar a sua
história. Nos fantasmas que invento para não pensar, nas histórias que conto
para não sentir a minha história.
É só quando me ouço que não gosto
do barulho, do desequilíbrio de forças, da impotência, do quadro escuro,
injusto e violento que se desenha à minha frente, da puta da vida. No silêncio,
no meu silêncio tento estar pouco tempo, porque sei que perco sempre com ele. Posso
ser atirado para longe, esmagado sem piedade, cair das alturas. O meu silêncio
gosta da sensação metálica do cano de uma arma na cabeça, gosta de mergulhos
para dentro de poços, de saltos de pontes para as águas em noites escuras. O
meu silêncio sabe aquilo que eu sei há muito tempo e não lhe dou tempo para
dizer. Preciso dele, visito-o de vez em quando, mas não me posso demorar. Posso
me afogar no silêncio dos outros mas não posso perder tempo no meu silêncio. Embora
precise dele. Embora precise sempre das suas palavras, dos seus gestos, das
suas imagens que me devolvem quem sou quando me perco demasiado tempo longe de
mim…
Artur
2 comentários:
... sobre as palavras ...
As palavras
São como um cristal,
as palavras
algumas, um punhal,
um incêndio.
outras,
orvalho apenas
Secretas vêm, cheias de memória.
inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem
Desamparadas, inocentes,
leves
tecidas são de luz
e são a noite.
e mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugenio de Andrade
(há quem nos rasgue o silêncio, onde nos demoramos às vezes demais... e nos faça descobrir, mesmo muito devagar... que há uma mão, que há uma voz... e também em nós...)
Um beijinho Artur:)
Obrigado Clarice.
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