Num texto publicado na revista do "Expresso" do último fim-de-semana, José Tavares afirmava a necessidade de libertar o 25 de Abril do Estado Novo para "amarrá-lo ao futuro".
Pelo contrário, e sem querer apoucar ou desmerecer a riquíssima e fecunda reflexão do autor, eu afirmo que é preciso libertar o 25 de Abril do 25 de Abril. E não me estou a referir - ou não me estou só a referir - ao mofo das comemorações institucionais: as habituais paradas militares, as múltiplas iniciativas locais que procuram esclarecer as crianças e os jovens sobre o significado e alcance do fenómeno histórico; os discursos na Assembleia da República na sessão solene (este ano mais ou menos abrilhantada pela presença do Presidente do Brasil, ocasião para o partido dos taberneiros e daquelas caras patibulares que nos enchem de nojo e de pavor nos brindar com o esplendor daquilo que pretende ser a sua agenda política e que não passa, afinal de contas, da exibição da sua indigência moral e intelectual); de outras agendas , umas que se reclamam do 24 de Abril, outras, que embora reconheçam a importância da Revolução, lhe procuram apoucar o significado nos dias de hoje, chamando constantemente a atenção para aquilo que ficou por cumprir, ou preconizam um modelo de regime que se afasta notoriamente das ideias que a data evoca. "Não se comem ideias, não se mora em ideiais", grunhem eles do alto do seu pragmatismo encardido - a estes devotos do onanismo, que correm o risco de escorregar com as quatro patas no unto da sua própria mediocridade e servilismo, pode-se responder que, de facto, onde não se pode viver é nas ruínas do mundo que pretendem construir - ; as evocações elevadas da poesia de Sophia de Mello Breyner (sobretudo) e de Manuel Alegre (em menor grau, vá-se lá saber porquê) e outros rituais massificados que, à força de o serem, acabam esvaziados do seu conteúdo real e essencial.
De qualquer modo, defendo que é preciso libertar o 25 de Abril do 25 de Abril: libertá-lo, emancipá-lo do sentido tirânico do discurso que há 49 anos sobre ele se produz, desenredá-lo das teias peçonhentas que o prendem num emaranhado de significados que lhe não são adequados, adormecendo-o numa latência oca e vazia, numa retórica balofa cujo referente há muito se perdeu e que se alimenta a si mesma indefinidamente. Em suma, devolver-lhe o valor de verdade; a sua verdade (só a verdade, como dizia um revolucionário profissional, é revolucionária). E que verdade é essa ? É uma verdade em camadas sobrepostas, cuja primeira é a da acção. Terão reparado que a imagem que ilustra este texto é da velha espingarda automática G3, como símbolo dessa acção. Lembra-nos que não foram os intelectuais das pastelarias do Rossio; nem os jovens filhos-família dos movimentos católico-esquerdistas ou católico-centristas, não foi o PCP, nem o MRPP, nem o PS, nem o MDP-CDE; não foram os maoístas de pacotilha; nem os baladeiros no seu exílio dourado em Paris; não foi aquela gente encostadinha aos seus privilégios e às benesses que o regime salazarista/caetanista lhes proporcionava e garantia, não foram os democratas de todas as confissões que fizeram o 25 de Abril; os agentes da acção foram um punhado de jovens oficiais, sargentos e praças, muito, pouco ou nada politizados, vários já experimentados na Guerra de África, que resolveram acabar com o "estado a que isto chegou", para citar as palavras de Salgueiro Maia nessa madrugada, ainda em Santarém. Foram as Forças Armadas de Portugal que devolveram ao país a dignidade, a esperança e o futuro que os arcontes lhe negaram durante 48 longos anos. Os idiotas de serviço apontam sempre nas suas análises rascas a questão corporativa - o famoso Decreto que colocava como mais antigos os oficiais do QE, à frente daqueles que tinham saído da Academia Militar -. A esses, deve-se responder que lhes bastava terem preenchido um requerimento no famoso papel azul de 25 linhas, onde veladamente ameaçassem, sem se desonrarem, com decréscimo do nível operacional, para que as múmias lhes satisfizessem as suas reivindicações, sem necessidade de arriscarem as vidas e carreiras. As mesmas Forças Armadas que forjaram este milagre que se chama Portugal (milagre porque improvável, milagre porque contra tudo e contra todos) e que construíram a nação em armas que este país sempre foi. Aliás, só nesse século XX essas mesmas Forças Armadas já tinham suportado o inferno das trincheiras francesas e que durante 13 anos, com bravura, heroísmo e inteligência, se empenharam em três teatros de operações que distavam milhares de quilómetros entre si e milhares de quilómetros da chamada Metrópole para que o regime encontrasse uma solução política honrosa e vantajosa quer para Portugal, quer para os territórios então coloniais. O que não aconteceu, como se sabe, por razões intensamente debatidas, razões que tudo explicam, excepto a estupidez e a cegueira de governantes ensimesmados nas suas convicções e enleados nos seus compromissos com as elites que os manipulavam e condicionavam.
A outra verdade, capaz de libertar o 25 de Abril do 25 de Abril, consiste na convicção de que o acontecimento é um património da Esquerda, embora os devotos do onanismo empreguem esforços (gritaria selvática) a negá-lo. Basta ver com olhos de ver a coincidência entre os ideais do programa do Movimento das Forças Armadas e aquilo que a esquerda ideológica preconizava para o país e a coincidência tangencial - quando a há - com a visão da direita democrática. Aliás, "direita democrática" é um oxímoro, uma contradição nos termos; não existe, não se pode experimentar; existem aqueles que se acomodaram e adaptaram às novas circunstâncias, explorando os interstícios que o regime democrático lhes oferece para modelarem a sociedade portuguesa à medida de interesses particulares e a atolarem no lodaçal da sua própria imundície. Tal ficou bem patente na infame personagem que dá pelo nome de Passos Coelho e no seu (des)governo; a nostalgia do 24 de Abril que essa gente todos os dias exprimia através de um projecto de empobrecimento, dominação e subversão das liberdades individuais e colectivas, de transferência massiva de rendimentos do trabalho para o capital e de favorecimento dos grupos económicos em detrimento do bem público, entre outros actos de banditismo político e de generalizada bandalheira moral. Pergunta-se, então, em que é que esses actos e essas ideias coincidem com o espírito e projecto do 25 de Abril de 1974 ? De que modo se teria cumprido Abril se esse desígnio não tivesse sido interrompido pela vontade do povo português ? Que imagem teriam hoje os portugueses de si próprios se se tivessem revisto na representação dessas luminárias abstrusas ?
Libertar o 25 de Abril do 25 de Abril significa, finalmente, negar uma célebre proposição de Eduardo Lourenço segundo a qual os portugueses sempre estiveram ausentes da sua própria realidade. Significa aceitar a descontinuidade, a inquietação e o inacabamento dos discursos sobre nós próprios e aquilo que nos moldou; re-interpretar a heterogeneidade daquilo que nos foi acontecendo à luz de uma coerência que está velada e de um significado que nos está oculto, não como uma fatalidade, um fado ou um destino, mas como uma circunstância que inquina a nossa vida pública e nos impede de termos um discurso positivo sobre a possibilidade de um discurso verdadeiro sobre a nossa modernidade e sobre as suas crises, que evita que pensemos essa mesma modernidade como a própria morada da crise, que coloca um obstáculo a que visemos que a verdade constitui, em si mesma, um certo acto, acto cujo significado é irredutível à verdade que através dele é dita. É isso que significa, para mim, libertar o 25 de Abril de si mesmo.