segunda-feira, 31 de maio de 2021

Diário Laboratório de 2021

8/1/2021

De resto, quanto ao gosto, este oscila. Está sujeito a modas, depende da subjetividade do leitor. É, assim, rigorosamente, inefável.

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Diário Laboratório de 2021

 7/1/2021

Na escrita importa, apenas, acabar os projectos-de-livro. A Arte não tem, seguramente, critério e a literatura é, talvez, de todas as formas de expressão artística aquela que, porventura, está mais afastada de um qualquer critério de fidelidade mimética (se essa for, aliás, uma exigência, coisa de que se poderá prescindir). Por isso, em rigor, a única condição da escrita é a da sua completude, a da fidelidade ao seu projecto interno ou, no limite, a adesão a um conjunto de condições, ex ante facto, autoimpostas pelo escritor segundo a sua proposta estética.

domingo, 16 de maio de 2021

OF MICE AND MEN


 

 

Quando somos novos tudo vibra no máximo de intensidade, tudo é uma corrida entre a vida e a morte para chegar ao fim de qualquer coisa. O caminho está cheio de escolhas…ou armadilhas, o que vai dar ao mesmo. Em cada canto há também uma eternidade para descobrir. Uma eternidade que só tem um instante para ser encontrada e que depois desaparece para sempre. Daí ser tudo uma questão para resolver entre a vida e a morte. Umas vezes era o mundo que nos caía em cima da cabeça, outras era apenas uma encruzilhada de caminhos que se nos oferecia para escolher. Por aqui ou por ali? Por aqui ou por ali..?

Algarve em pleno Verão ao fim da tarde, um calor enorme e a vontade de adormecer, um calor enorme e a vontade de derreter a consciência no calor e não pensar em mais nada. A cabeça vazia e a necessidade de a encher para que não queimasse, as ruas vazias de gente, vazias de… O pó em vez da resina, o pó em vez da resina. O pó mais caro, mais viciante e mais destruidor. O pó que não queríamos e uma mota, uma ideia no ar. Vamos comprar a Gibraltar? Os caminhos e as escolhas, a vontade de eternidade, o instante para a agarrar, a estrada e o caminho. O bafo quente do vento pela estrada fora, o cheiro inconfundível do Sul nas nossas caras e em pouco tempo Espanha. O mar de um lado e o deserto do outro, parques de campismo, saídas para outras cidades, Huelva, antepassados meus, piratas do Mediterrâneo e a serenidade do anoitecer sobre nós. E o destino alcançado. A zona das docas é sempre igual em todas as cidades portuárias, Roterdão, Lisboa, Barcelona, Gibraltar. De dia a azáfama de mercadorias, cargas e descargas, navios que entram e saem sem parar, guindastes, contentores. De noite uma outra fauna, um outro mercado. Marinheiros bêbados, vagabundos, marginais, putas. Contrabando variado, armas, drogas, sexo.

 

  Ratita, quieres ratita?

 

 Mulheres de roupas leves e maquilhagem carregada. Nós em cima da mota sem a desligar

 

  No,no. Chocolate…tienes chocolate?

 

E os preços, as alturas, as quantidades, o pagamento sem desligar a mota e a saída breve dali no momento em que uma delegação de zombies se aproximava para nos fazer o inventário. O arranque sem pressa nem grande alarido para não dar nas vistas e numa praia mais próximo uma paragem técnica para abastecimento. O mar e a cabeça a encher-se de vazio enquanto expulsava as angústias e os medos

 

A andar daqui faz favor, vamos embora que já é tarde

 

E o vazio a crescer, as gargalhadas por coisa nenhuma, o mar, um som ao longe de uma banda local

 

  Entre dos tierras estas, y no dejas aire que respirar

 

E sempre entre duas terras e em terra de ninguém, entre escolhas e a frustração de escolher, entre as eternidades que te dizem

 

a chave do amor

 

ou que te oferecem por um preço

 

ratita, quieres ratita?

 

ou o passado e o presente, as memórias e as falhas, os caminhos ou ainda o tremendo vazio que não te deixa dar um passo mas que te faz rir quando nada te consegue animar. As vitórias e as derrotas no terreiro da batalha que se apaga em três tempos e te dá alcunhas sinónimos de nada quando pensas ter sido alguma coisa. A mota e o dia a nascer e o universo a celebrar-se a si próprio em apoteótico amanhecer. O universo a que pertences mesmo quando julgas que não existes ou que não tens importância nenhuma. A mota de novo na estrada e o calor, sempre esse calor mágico que te beija perfumado de Sul. A saída para Huelva outra vez

 

Confecções Morgado, de manhã não abre, à tarde está encerrado

 

E as tendas de campistas adormecidos, as tropas de Tariq Ziyad a caminho da invasão da Hispânia Visigótica, entre prisioneiros e libertadores, entre religiões, entre dos tierras, uma visigoda atrevida para uma sentinela muçulmana

 

Ratita?

 

E um campista distraído, um presbítero com insónias, o bafo do deserto e o mar traiçoeiro a beijar a areia da praia

 

Chocolate ?

 

De alguma forma tudo encaixado na sua respectiva caixa, tudo a fazer sentido no universo, mesmo quando parece que só existe caos e tragédia. De alguma forma tudo encaixava sem que conseguíssemos perceber, de alguma forma os mundos bailavam entre eles, os tempos garantiam que a noite sucedia ao dia, os antepassados viviam através de nós por mais inúteis que nos conseguíssemos sentir.

O calor era sempre forte e aparecia em datas marcadas, o Sul perfumava-se com o bafo do deserto e o mar esticava e encolhia ao ritmo da Terra que respirava. Não havia grandes equações para resolver. Os nossos netos acabariam por trilhar os mesmos caminhos e ter os mesmos medos, as mesmas frustrações e não havia nada que alterasse isso.

 

A mota descansava por fim na garagem. Amanhã era dia de trabalho. Numa viagem de ida e volta atravessámos galáxias pela fronteira permanente entre duas terras, entre dois tempos, entre nós e o futuro. Sobrevivemos, regressámos vivos. Continuaremos, e quando deixarmos de continuar talvez uma visigoda distraída nos venha receber, talvez uma profissional de docas, talvez a morte vestida com roupas leves e maquilhagem carregada se aproxime devagar

 

Ratita?

 

Artur

 

 

quinta-feira, 13 de maio de 2021

ATÉ AO BOSQUE DE POEMAS

 

 
 
Décimo dia do quinto mês de dois mil e vinte um. Cada dia me faz menos sentido usar o ecrã senão para dar os abraços que não posso dar pessoalmente porque vocês estão longe. Creiam que me continuo a mover nesta pequena ilha como antes pelo planeta. E que a forma como o faço, e o que que me impele, vem do lugar onde o meu coração está plantado.
Quando cheguei mal tinha forças para pegar numa mala de dez quilos. Toda a minha estrutura se desmanchava, se dobrava, com risco de se partir. Caí duas vezes no meio do terreno, de costas, e fiquei plantada a olhar para as estrelas. Era noite e tinha chovido, era de dia e eu não olhava para os pés. Hoje a tão negligenciada memória muscular é como o bordão dum romeiro, como a bengala dum cego. A terceira vez que caí arranjou-se o joelho direito que tanto incomodava. A rótula fez clac quando a perna ficou debaixo de mim, et voilá! Tudo deixou de doer.
Além de todos os episódios que me enfraqueceram para depois me fortalecer, apareceram-me uns anjos que me dão a mão da forma mais surpreendente. Deixei de ter dúvidas sobre o que mais me encanta nas pessoas e deixei de ter medo disso mesmo. E com este pensamento continuo a amanhecer.
 
Elsa Bettencourt