"Quem proclama uma teoria do progresso coloca-se irremediavelmente a si mesmo como participante, portador e ponto de culminação no drama do progresso. Quem mostra uma teoria da decadência faz-se valer a si mesmo como um afectados pelo drama da decadência, quer seja como aquele que protesta, se resigna ou aguenta. Quem diagnostica renascimentos ou épocas de mudança põe-se a si mesmo em jogo como parteira, como piloto da mudança ou até como candidato à reencarnação. E quem profetiza a ruína, declara-se como moribundo, como quem ajuda a morrer, como carpideira ou, por fim, como explorador dos restos da cultura que está agonizante."
Peter Sloterdijk
Ante este estranho e fascinante objecto - e chamo-lhe "objecto" à falta de outro substantivo que o possa subsumir, visto que o próprio autor o classifica como um "não-livro" - confesso-me incapaz de constituir um discurso crítico, pelo menos no sentido tradicional e clássico que o cânone atribui a "crítico".
Assim, sinto-me tentado a classificá.lo como uma dose massiva de lucidez, um tipo de clarividência que o mundo contemporâneo parece rejeitar, mergulhado que está na estupidificação maciça e numa deriva que parece conduzir-nos para a apatia ou ataraxia generalizada, impelindo-nos para um beco sem saída ôntico e para um abismo para o qual corremos com brio e denodo, uivando alegremente com os lobos.
O projecto insano e maravilhoso de reescrever a História da Humanidade, a que o João Nuno se entrega com uma intensidade que é difícil ignorar e que somos compelidos pela leitura a acompanhar, não se compagina de nenhum modo com facilitismos e imediatismos. Requer, pelo contrário, que punhamos na leitura e na constituição do sentido o mesmo tipo de intensidade, o mesmo despojamento de regras, a mesma indiferença em relação a padrões que constituem o âmago de uma obra literária (objecto, não-livro, texto, tessitura, aquilo que entendermos que é) que está na sua génese e que prefere ignorar os limites e estabelecer o seu próprio padrão, a sua singular e irrepetível métrica.
A pergunta que me perseguiu desde a primeira leitura (e que não se atenuou com a segunda, e muito menos com a terceira) é : existirá uma modalidade rigorosamente lógica e demonstrável do conhecimento humano sobre esse mesmo ser humano que conhece ? A resposta de "1450 cm3" parece ser - arrisco.me mesmo muito nesta hipótese - não, não existe. Apontando para aquilo a que Hermann Broch chamava "desintegração axiológica, João Nuno Teixeira sustenta um mundo, uma "humanitas" que não é passível de ser representada como uma totalidade fixa, estável e para sempre cognoscível, afirmando que a suposta perenidade da condição humana, em vez de garantir essa mesma estabilidade, se constitui como o ponto de partida de uma interrogação permanente, de uma problematização que não cessa; Adão não acaba de acabar, coexiste permanentemente com os seus duplos e, até, com a sua negação.
Queira ou não queira o autor - e muitas vezes os autores não sabem exactamente aquilo que querem ou querem o contrário daquilo que obtêm - aquilo a que chega é à posição de um sujeito epistemológico e à constituição de um campo de observação que representa a personalidade humana na sua abstracção mais extrema, o que é equivalente a dizer: na sua concretude mais radical.
As pressões a que o autor sujeita a linguagem roçam por vezes os limites da inteligibilidade. É um risco assumido: desconstruir as estruturas linguísticas para depois as reconstruir indica uma incansável vontade de reconstituir o mundo através da linguagem e assim fazer com que esta "fale". Atente-se nesta passagem (capítulo IV "Fome de Infinito"): «Criador. O criador ? O criador ! A é a circunstância do tempo, modo e lugar. A quinta essência está nas mãos tenras de uma criança. As fossas nasais do demiurgo estavam perto. Por onde andaria ? [...] Espaço, Tempo. O espaço e o tempo inscrevem-se na obscuridade do paradoxo. Nada mais perverso que o tempo: tira o que não se tem e dá o que já se possui. inventando a sua proclamada lógica». Atente-se, então, na progressão das repetições, na musicalidade difusa que pretende, e consegue, criar um sentido a partir de uma permutação de relações metamórficas e de relações potenciais. Se cito esta passagem, podendo citar muitas outras, é porque ela me parece emblemática do tom geral da obra e de uma afirmação constante de que não existe nenhuma expressão, ou melhor, de que não existe nenhum código expressivo, cuja origem seja um vazio total; é assim que esta obra põe em jogo princípios de uma coerência tão difusa e multímoda que por vezes sentimos dificuldade em classificá-los ou incluí-los numa visão ordenada. Mas, perante esta obra, para que precisamos de um a visão ordenada ? Para coisa nenhuma, na realidade; basta que nos libertemos da "tirania do sentido" e nos deixemos embarcar no profundíssimo questionamento que oscila entre a hipótese transcendente do criacionismo e a criação humana como criação ex nihil sem porquê nem sentido que lhe seja anterior ou final; o velho sonho da libertação das teorias da causalidade não anda longe daqui. Felizmente.
Uma obra que põe em causa o sentido do sentido deveria fazer parte do currículo de qualquer cidadão que se respeite como tal. Desconheço, obviamente, qual será o destino desta obra - como será acolhida, quantos leitores encontrará, que reacções provocará. Quanto a mim, reputo-a como um dos mais estimulantes, exigentes e gratificantes livros portugueses dos últimos anos, merecendo figurar como um monumento à Ironia e à capacidade de desinstalação. O que não é dizer pouco: é através de obras como esta, que avançam por meio de uma prodigalidade de pressupostos teóricos, culturais e linguísticos, que o homem se pode libertar do tempo, superar momentaneamente a sua presença e o presente da sua própria morte pontual.