Naqueles tempos a Faculdade era
um espaço estranho e grandioso para os seus alunos mais novos. Tinha tanto de
fascinante como de fascizante no que às relações humanas dizia respeito. Por um
lado era o último patamar da formação, o último desafio antes da vida adulta. A
sabedoria, a cultura e as inteligências bailavam entre si fazendo-nos sentir
importantes, proprietários progressivos de um pedaço de conhecimento…quase
donos de um pedaço do universo. As estatísticas diziam que, naquele tempo,
apenas cerca de 38% de cada geração chegava ali. Por outro lado a enorme
quantidade das cargas de trabalho, as pautas sempre a nivelar por baixo e a
vomitar notas baixas e muitos dos mestres distantes e austeros concorriam para
a desmotivação e o desalento.
Ele era um merdas como tantos
outros em todos os tempos e em todas as gerações. Um Assistente ainda novo que
seguia o regente da cadeira como um cãozinho amestrado sempre disponível para
qualquer recado, rir das piadas idiotas do velho, em suma, sempre pronto para
qualquer habilidade requerida em nome de um doutoramento futuro. Por isso não
só não lhe vou dar um nome como nem sequer uma alcunha. Era um merdas e pronto.
O Manuel da Horta (nome
propositadamente fictício) era e é ainda hoje, um dos meus melhores amigos de
sempre. Um tipo tranquilo, conciliador, afável, conversador e, acima de tudo,
um dos seres mais inteligentes que conheci. Volta na volta surpreendia-nos com
comportamentos fora do comum, como por exemplo fazer questão de atravessar a
rua para cumprimentar pessoas de que não gostava. Ou fazer uma declaração de
amor a uma betoneira das obras ( mas isso já em épocas “festivas”).
Chegámos à Faculdade convencidos
que éramos uns geniozinhos e que, uma vez ali, o resto do caminho seria um pic
nic no parque. Não foi. Um após outro fomos nos habituando ao sabor amargo da
derrota, das notas negativas, dos chumbos. O Manuel foi o último a atravessar
esta experiência dolorosa. Na oral do cadeirão do 1º ano, com o tal merdas,
terminou o dia com um chumbo e um requinte de humilhação pela sua ignorância.
Ficou de tal modo traumatizado que no ano lectivo seguinte resolveu não meter
os papeis de dispensa e avançar para o SMO (Serviço Militar Obrigatório).
Ofereceu-se voluntário para os Rangers.
Na altura, ao abrigo da lei
militar havia a possibilidade de fazer o curso com marcações de exames todos os
meses, uma forma de minimizar o impacto do afastamento quotidiano das aulas. O
Manuel aproveitou esse regime.
A tropa é de certa maneira uma
grande Faculdade da Vida onde se somam várias cadeiras de vários saberes. É
também uma escola que nos ajuda a crescer de uma forma mais rápida e nos despe
de muitas inibições. Corre-se de manhã em tronco nu com um frio glacial,
caminham-se kilómetros, dão-se uns tiros, levam-se uns socos, etc,etc. Como
dizia outro merdas de um Alferes que me deu recruta: “Procura-se que o
instruendo termine a sua formação tendo adquirido uma certa “rusticidade”…”
Na segunda vez que o Manuel veio
de Lamego foi directo à secretaria da Faculdade antes de ir a casa, não tendo
sequer tirado a farda. Na fila viu que, mesmo à sua frente estava o merdas que
o tinha chumbado na época anterior. Não pensou duas vezes. Alçou da mão e
pregou-lhe uma palmada enorme nas costas que o fez saltar dois lugares na fila
involuntariamente. – Então? Ainda cá andas? – o outro, meio atordoado virou-se
para trás. – Ainda cá ando? Mas você conhece-me de algum lado? – O Manuel não
perdeu a pose e ripostou: - Schh…vira-te para a frente e caladinho senão ainda
levas outra. –
Nessa noite com mais um amigo e
no meio das imperiais da cervejaria do bairro contou-nos a façanha como quem
explica que foi comprar cigarros. Foi o que lhe saiu naquele momento e pronto.
Estava feito. Eu e o outro amigo ficámos embasbacados a olhar para ele. Ainda
ia repetir o exame. E se lhe calhasse outra vez aquele gajo? O Manuel
mantinha-se tranquilo. Era muito azar levar duas vezes com o mesmo gajo numa
oral. Ainda para mais ele estava fardado, de modo que nem o iria reconhecer.
Um mês depois o Manuel foi outra
vez à oral da tal cadeira que tinha reprovado no ano anterior. Azar dos
Távoras, o tipo que lá estava à espera dele era o mesmo que tinha levado a
pantufada na fila da secretaria. O Manuel nem teve tempo de responder a nada. A
primeira frase do outro foi: - Então ainda cá andas?
Artur