Jean Jacques Beineix
França, 1981
A primeira de várias lições que
aprendi com este filme foi a de que era possível filmar um poema, facto até aí
considerado completamente impossível na mais imaginativa e jovem mente que me
orientava no final da minha adolescência. Um poema em fundo azul feito de
formas e sons que nos agarra desde o primeiro instante atirando-nos para um
universo único de sonho e emoção. O
impacto causado por este filme foi de tal maneira profundo que o decidi ver e
voltar a ver vezes sem conta sem nunca me cansar ao longo de uma vida inteira.
Baseado no livro homónimo de Daniel Odier (1979) com o pseudónimo Delacorta,
DIVA representa à partida uma primeira tentativa do cinema francês em se
afastar do modo realista até aí imperante na década de 70 bem como o regresso a
um estilo melódico e colorido mais tarde definido como cinéma du look (*). Um estilo onde se incluiriam além do próprio
Beineix, cineastas como Luc Besson e Leos Carax que privilegiavam o estilo
sobre o conteúdo, o espectáculo sobre a narrativa, num visual focado em
personagens jovens representantes de uma certa marginalidade na França de
Miterrand. Há uma cantora lírica (interpretada pela soprano americana
Wilhelmenia Fernandez) que se recusa a fazer registo das suas actuações, um
jovem carteiro amante de ópera que consegue uma gravação pirata num concerto,
um grupo de mafiosos que procura por todos os meios obter essa mesma fita, uma
rede de tráfico de mulheres dirigida por um inspector da policia e sobre tudo
isto, Paris. Mas a história acaba por ser o que menos interessa na medida em
que o tempo é escasso para absorver tanto a beleza das imagens como do objecto
filmado. Mais uma vez o Cinema assume a sua linguagem directa exprimindo-se na
sua dimensão mais pura de significação deixando a narrativa e a sequência da
acção num plano secundário. Desde a alucinante cena da perseguição no Metro até
à explosão de um clássico Citroen branco e imaculado dos anos 30 passando por
um farol idílico e um "puzzle" gigantesco que só vamos conseguir
entender mesmo no fim vai pairando sobre nós uma área da ópera "La
Wally" (1892) do compositor italiano Catalani. Num filme de enquadramento e folclore típicos
da cultura pop, a sua inspiração principal vem do amor à ópera reforçando as
possibilidades ilimitadas de diálogo entre estilos, artes e discursos que
aparentemente nada têm a dizer entre si. O compasso entre a beleza do canto
lírico e a rusticidade dos mafiosos só se interrompe com a inocência do jovem
carteiro, bem como com o auxílio dos seus companheiros de aventura.
O cartaz deste filme é uma
expressão de identidade visual daquilo que pretende representar, ou seja, um
jogo de formas e personagens de várias dimensões em harmonia interactiva. Um
fundo azul, rostos inacabados, assustados, caminhos sem direcção, universos
distintos comunicantes entre si.
Para mim, para além de um dos
filmes da minha vida, DIVA é um poema sobre o vazio das nossas vidas. Mas é
também um convite à imaginação e à obrigação que todos temos de construír algo de
belo num espaço onde estamos apenas de passagem.
Artur Guilherme Carvalho
(escritor/cinéfilo/crítico de
cinema)
(*) Designação atribuída ao
crítico de cinema Raphael Bassan em "La Revue Du Cinéma" nº 448 de
Maio de 1989.
Publicado na página digital da Cinemateca - Museu do Cinema, na colecção Textos e Imagens.
Lisboa 05/07/2018