sexta-feira, 10 de agosto de 2018

DIVA


Jean Jacques Beineix
                                       
França, 1981


A primeira de várias lições que aprendi com este filme foi a de que era possível filmar um poema, facto até aí considerado completamente impossível na mais imaginativa e jovem mente que me orientava no final da minha adolescência. Um poema em fundo azul feito de formas e sons que nos agarra desde o primeiro instante atirando-nos para um universo único de sonho e emoção.  O impacto causado por este filme foi de tal maneira profundo que o decidi ver e voltar a ver vezes sem conta sem nunca me cansar ao longo de uma vida inteira. Baseado no livro homónimo de Daniel Odier (1979) com o pseudónimo Delacorta, DIVA representa à partida uma primeira tentativa do cinema francês em se afastar do modo realista até aí imperante na década de 70 bem como o regresso a um estilo melódico e colorido mais tarde definido como cinéma du look (*). Um estilo onde se incluiriam além do próprio Beineix, cineastas como Luc Besson e Leos Carax que privilegiavam o estilo sobre o conteúdo, o espectáculo sobre a narrativa, num visual focado em personagens jovens representantes de uma certa marginalidade na França de Miterrand. Há uma cantora lírica (interpretada pela soprano americana Wilhelmenia Fernandez) que se recusa a fazer registo das suas actuações, um jovem carteiro amante de ópera que consegue uma gravação pirata num concerto, um grupo de mafiosos que procura por todos os meios obter essa mesma fita, uma rede de tráfico de mulheres dirigida por um inspector da policia e sobre tudo isto, Paris. Mas a história acaba por ser o que menos interessa na medida em que o tempo é escasso para absorver tanto a beleza das imagens como do objecto filmado. Mais uma vez o Cinema assume a sua linguagem directa exprimindo-se na sua dimensão mais pura de significação deixando a narrativa e a sequência da acção num plano secundário. Desde a alucinante cena da perseguição no Metro até à explosão de um clássico Citroen branco e imaculado dos anos 30 passando por um farol idílico e um "puzzle" gigantesco que só vamos conseguir entender mesmo no fim vai pairando sobre nós uma área da ópera "La Wally" (1892) do compositor italiano Catalani.  Num filme de enquadramento e folclore típicos da cultura pop, a sua inspiração principal vem do amor à ópera reforçando as possibilidades ilimitadas de diálogo entre estilos, artes e discursos que aparentemente nada têm a dizer entre si. O compasso entre a beleza do canto lírico e a rusticidade dos mafiosos só se interrompe com a inocência do jovem carteiro, bem como com o auxílio dos seus companheiros de aventura.
O cartaz deste filme é uma expressão de identidade visual daquilo que pretende representar, ou seja, um jogo de formas e personagens de várias dimensões em harmonia interactiva. Um fundo azul, rostos inacabados, assustados, caminhos sem direcção, universos distintos comunicantes entre si.
Para mim, para além de um dos filmes da minha vida, DIVA é um poema sobre o vazio das nossas vidas. Mas é também um convite à imaginação e à obrigação que todos temos de construír algo de belo num espaço onde estamos apenas de passagem.





Artur Guilherme Carvalho

(escritor/cinéfilo/crítico de cinema)




(*) Designação atribuída ao crítico de cinema Raphael Bassan em "La Revue Du Cinéma" nº 448 de Maio de 1989.

Publicado na página digital da Cinemateca - Museu do Cinema, na colecção Textos e Imagens. 

Lisboa 05/07/2018