quarta-feira, 9 de agosto de 2017

FOUCAULT




A obra de Michel Foucault tem sido objecto de múltiplas interpretações e de numerosos comentários numa grande variedade de disciplinas: psiquiatria, psicanálise, sociologia, crítica literária ou artísticas, ciências políticas, etc. De todas essas interpretações - se é que de uma interpretação se trata -, escolheria sempre a colectânea de ensaios "Michel Foucault" de Gilles Deleuze, quanto mais não fosse porque me comove a profunda afinidade entre os dois filósofos e o modo como os seus pensamentos dialogam, um diálogo que a morte de Foucault não interrompeu. De qualquer modo, e para além dessa diversidade de "usos", que reflecte a própria diversidade da obra, é possível encontrar um fio condutor que corre através de todos os seus textos recentrando-a em torno de uma questão eminentemente filosófica (quase diria : "a única questão eminentemente filosófica"): a questão da verdade, considerando que o homem se encontra reflectido nesses textos como "animal de verdade", embora Foucault tenha operado um descolamento importante dessa interrogação. Recordemos: a questão clássica da filosofia é: desde que fundamento pode um sujeito conhecer o mundo ? De Platão a Kant, passando por Espinosa, trata-se de reflectir um nó originário e interior, uma parentalidade de essência, uma correlação irredutível entre a alma e a verdade, entre o sujeito e o conhecimento. Em Foucault, a relação do sujeito com a verdade não se reflecte a partir do nexo interior do conhecimento, mas é construído a partir da relação exterior da história. A questão já não é: desde que fundamento um sujeito pode conhecer verdades sobre o mundo ? Mas: quais os processos históricos das estruturas de subjectivação se encontram ligadas aos discursos de verdade ? Trata-se então, de descrever historicamente os procedimentos pelos quais, na história, os discursos de verdade transformam, alienam, configuram os sujeitos e através dos quais as subjectividades se constróem e se trabalham através de um dizer-verdade.
Não querendo tentar explicar aqui todo o pensamento de Foucault (coisa que não teria competência para fazer), efectuo um salto quântico para a vertente desse pensamento que verdadeiramente me interessa: o que Foucault procurou fazer foi encontrar, como matriz dos discursos verdadeiros, os discursos de poder. O conceito de "vontade de saber" serve-lhe para enquadrar essa análise: é preciso opor o desejo de conhecimento à vontade de saber. O desejo de conhecimento, de Platão e Aristóteles a Espinosa, é o que relaciona e ata um sujeito e uma verdade pré-dados num acordo interior, desde sempre secretamente unidos, de tal modo que o movimento pelo qual o sujeito conhece a verdade realiza a sua natureza imemorial. A vontade de saber, dos sofistas a Nietzsche e Freud, descobre por detrás da busca de verdade o jogo sempre em movimento das pulsões ou dos instintos de domínio: a relação do sujeito com a verdade é uma relação de poder que se liga à exterioridade da história, apoiada por práticas e interesses sociais. É nestas coordenadas que o pensamento de Foucault se revela essencial para compreendermos os nossos tempos: depois de décadas de uma ilusão de liberdade e de realização individuais, voltamos à questão essencial: as técnicas de verdade (a verdade como tecnologia, a verdade como produção de realidade e como procedimento de subordinação dos indivíduos) produzem a realidade em vez de a reflectirem. É assim que a doença mental, a delinquência, o mercado, a sexualidade, o Estado (noções relevantes da política, da economia ou das ciências sociais) não existem: são qualquer coisa que não existe, mas que não deixa de ser real e verdadeira; a verdade apoiada por sistemas de poder, produz a realidade do que não existe, constrangendo as existências materiais a assemelharem-se a essa realidade: é assim que o asilo pode ser descrito como uma máquina de fabricar loucos, em nome de uma ciência médica da doença mental. Este exemplo, que retiro da obra "Histoire de la Folie À L'Âge Classique", mas que poderia ser encontrado em múltiplos equivalentes de "Vigiar e Punir", remete para a conclusão (provisória) que pretendo retirar: por um lado, o sujeito constitui-se e inventa-se, resiste aos grandes sistemas políticos de domínio a partir de um movimento de verdade inquieta; mas por outro lado, os discursos de verdade instituídos, socialmente aceites, encerram-no numa monotonia inerte dos hábitos e certezas comuns. A filosofia de Foucault reivindica finalmente uma fidelidade total à lição socrática: mais do que fundar a verdade do verdadeiro, a sua função é a de inquietar e perturbar o regime das evidências.