SILENCE
Martin Scorsese
EUA, 2016
Para abordarmos este título, inspirado na obra homónima de
Shusaku Endo (1923 – 1996) com o título original “Chinmoku”, com resultados
minimamente esclarecedores, teremos que atravessar dois territórios
incontornáveis. O diálogo cultural entre o Ocidente e o Oriente por um lado, e
o diálogo ou a peregrinação interior do homem de fé dentro de si próprio. Publicado
em 1966 “Chinmoku” retrata a odisseia de
dois padres jesuítas (Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe) que partem para o
Japão à procura do seu mentor Cristóvão Ferreira empenhados em desmentir o
boato de apostasia de que era acusado. Pelo caminho vão ser confrontados com
uma ordem social e política que reprime, proíbe e extermina os cristãos num
Japão em processo de unificação e reforço da autoridade central.
Considerado por muitos como um dos mais importantes romances
do séc. XX, “Chinmoku” levanta várias questões interessantes quer de carácter
colectivo, quer individual. De que forma é que a cristandade se poderia
comprometer com uma cultura estrangeira? Pela força? Por aliança? Por
acomodação? E se desfizéssemos um fato e o tentássemos transformar num kimono,
qual seria o resultado final? Por outro lado que deus é este que acompanha um
crente na total adversidade sem nunca se manifestar? Que deus é este que em vez
de aliviar o sofrimento aos seus seguidores opta por os acompanhar no martírio?
No ano de 1543 um barco mercante português a caminho da
China é desviado do seu curso por uma tempestade que o empurra para a costa de
Kyushu. Começa a partir daqui um riquíssimo e extraordinário diálogo de séculos
entre duas culturas diametralmente opostas que, com momentos altos e baixos,
sempre se conseguiu manter dialogante, criativa e vantajosa para ambas as
partes. Seguindo-se ao intercâmbio comercial e cultural veio a religião. S.
Francisco Xavier é o primeiro cerca de 1540 a erguer junto com a ordem dos
jesuítas, uma estrutura em rápido desenvolvimento. Em trinta anos o território
do Japão contava com 200 igrejas, 75 padres e cerca de 300 mil crentes.
Apoiados pelos daimyo (barões locais)
os cristãos por sua vez fortaleciam o controle político. A partir do final do séc.
XVI quando o Shogun Tokugawa Ieyasu inicia o seu esforço determinado em
unificar o país vê nos cristãos e na sua comunidade um inimigo aos seus
objectivos. Começam as operações de obrigação da nova religião aos caminhos da
clandestinidade. A primeira ordem de expulsão dos jesuítas do Japão data de
1587. Em 1603, vinte e seis cristãos são crucificados em Nagasaki. Os agora
cristãos clandestinos (Kakure kirishitan) passam a ser perseguidos, torturados
e mortos por causa da sua fé. Têm no entanto a possibilidade de se salvar
negando a sua religião havendo para o efeito o acto de apostasia que consiste
na colocação do pé sobre um ícone cristão (a imagem de Jesus ou da Virgem Maria), fumi-e.
Sebastião e Francisco chegam ao Japão no rescaldo da
rebelião de Shimabara (1637 – 1638) onde o Shogunato Tokugawa conseguiu uma
importante vitória, eliminando todos os restantes Kirishitan. Em contacto com
estas comunidades clandestinas, Sebastião e Francisco vão experienciar todo um
desfile de perseguições, crueldade e tortura pontuados pelo Judas permanente,
Kichijiro, que não só denuncia os sacerdotes como comete apostasia mais do que
uma vez. Arrepende-se e volta a pecar numa sequência interminável. Em todo o martírio deus permanece silencioso,
não se manifestando de nenhuma forma. Sebastião está disponível para oferecer o
sacrifício da sua vida pela fé mas em vez disso as autoridades japonesas vão
eliminando cada vez mais cristãos locais até que ele negue a sua fé. Tudo vai
mudar com o encontro com Cristóvão Ferreira. Confirmado o acto de negação da
sua fé o antigo mentor do jovem jesuíta tenta aos poucos confrontá-lo com a
inutilidade do sacrifício, com o nulo valor de um acto simbólico, com a ideia
de que se Cristo estivesse ali escolheria poupar as vidas daqueles que vão
morrendo enquanto Sebastião não negar a sua fé. Sebastião acaba por pisar o
ícone e até ao fim dos seus dias torna-se um japonês de religião e de costumes.
No cinema esta é a terceira vez que se faz uma adaptação do
livro de Endo. Em 1971 Matsuhiro Chinoda realizou SILENCE e em 1996 João Mário
Grilo assina OS OLHOS DA ÁSIA.
Teizo Matsumura no ano 2000 (opera) e James Mac Millan em
2002 (Sinfonia nº 3 “Silence”) complementaram a componente musical do tema.
Posto isto resta saber o que é que Scorsese acrescenta a
tudo aquilo que já foi feito em relação a este momento literário
extraordinário. Uma excelente fotografia e uma narrativa cinematográfica
composta por requintados quadros. De resto o estereotipo dos japoneses que ora
são criaturas medonhas em estado quase selvagem ou tiranos sanguinários
indiferentes ao sofrimento dos outros. Enquadramento histórico, zero. O aspecto
do diálogo ou choque cultural é pura e simplesmente minimizado, reduzido a meia
dúzia de balelas sobre religião. O conflito interno de Sebastião amplamente
documentado no livro original em Scorsese limita-se à multiplicação das várias
caretas de Andrew Garfield. Se quiser saber o que vai na cabeça de Sebastião, o
espectador que adivinhe.
Por fim o filme é demasiado longo, repetitivo, chato e
inconclusivo. O original de Chinoda conta a mesma história em menos meia hora.
As cenas dos cristãos massacrados bem como o acto da apostasia repetem-se vezes
sem fim até à náusea. Por fim a narrativa abre uma série de portas que não
consegue fechar e aponta vários caminhos que depois acaba por não percorrer.
Vale a indústria americana carregar aos ombros o sucesso e a originalidade para
justificar e fazer crescer a sua margem de lucro. Mas não vale tudo na luta
pela ocupação da barraca das farturas.
Artur