domingo, 26 de março de 2017

SILENCE




SILENCE

Martin Scorsese

EUA, 2016



Para abordarmos este título, inspirado na obra homónima de Shusaku Endo (1923 – 1996) com o título original “Chinmoku”, com resultados minimamente esclarecedores, teremos que atravessar dois territórios incontornáveis. O diálogo cultural entre o Ocidente e o Oriente por um lado, e o diálogo ou a peregrinação interior do homem de fé dentro de si próprio. Publicado em 1966 “Chinmoku” retrata  a odisseia de dois padres jesuítas (Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe) que partem para o Japão à procura do seu mentor Cristóvão Ferreira empenhados em desmentir o boato de apostasia de que era acusado. Pelo caminho vão ser confrontados com uma ordem social e política que reprime, proíbe e extermina os cristãos num Japão em processo de unificação e reforço da autoridade central.
Considerado por muitos como um dos mais importantes romances do séc. XX, “Chinmoku” levanta várias questões interessantes quer de carácter colectivo, quer individual. De que forma é que a cristandade se poderia comprometer com uma cultura estrangeira? Pela força? Por aliança? Por acomodação? E se desfizéssemos um fato e o tentássemos transformar num kimono, qual seria o resultado final? Por outro lado que deus é este que acompanha um crente na total adversidade sem nunca se manifestar? Que deus é este que em vez de aliviar o sofrimento aos seus seguidores opta por os acompanhar no martírio?
No ano de 1543 um barco mercante português a caminho da China é desviado do seu curso por uma tempestade que o empurra para a costa de Kyushu. Começa a partir daqui um riquíssimo e extraordinário diálogo de séculos entre duas culturas diametralmente opostas que, com momentos altos e baixos, sempre se conseguiu manter dialogante, criativa e vantajosa para ambas as partes. Seguindo-se ao intercâmbio comercial e cultural veio a religião. S. Francisco Xavier é o primeiro cerca de 1540 a erguer junto com a ordem dos jesuítas, uma estrutura em rápido desenvolvimento. Em trinta anos o território do Japão contava com 200 igrejas, 75 padres e cerca de 300 mil crentes. Apoiados pelos daimyo (barões locais) os cristãos por sua vez fortaleciam o controle político. A partir do final do séc. XVI quando o Shogun Tokugawa Ieyasu inicia o seu esforço determinado em unificar o país vê nos cristãos e na sua comunidade um inimigo aos seus objectivos. Começam as operações de obrigação da nova religião aos caminhos da clandestinidade. A primeira ordem de expulsão dos jesuítas do Japão data de 1587. Em 1603, vinte e seis cristãos são crucificados em Nagasaki. Os agora cristãos clandestinos (Kakure kirishitan) passam a ser perseguidos, torturados e mortos por causa da sua fé. Têm no entanto a possibilidade de se salvar negando a sua religião havendo para o efeito o acto de apostasia que consiste na colocação do pé sobre um ícone cristão (a imagem de Jesus ou da Virgem Maria), fumi-e.
Sebastião e Francisco chegam ao Japão no rescaldo da rebelião de Shimabara (1637 – 1638) onde o Shogunato Tokugawa conseguiu uma importante vitória, eliminando todos os restantes Kirishitan. Em contacto com estas comunidades clandestinas, Sebastião e Francisco vão experienciar todo um desfile de perseguições, crueldade e tortura pontuados pelo Judas permanente, Kichijiro, que não só denuncia os sacerdotes como comete apostasia mais do que uma vez. Arrepende-se e volta a pecar numa sequência interminável.  Em todo o martírio deus permanece silencioso, não se manifestando de nenhuma forma. Sebastião está disponível para oferecer o sacrifício da sua vida pela fé mas em vez disso as autoridades japonesas vão eliminando cada vez mais cristãos locais até que ele negue a sua fé. Tudo vai mudar com o encontro com Cristóvão Ferreira. Confirmado o acto de negação da sua fé o antigo mentor do jovem jesuíta tenta aos poucos confrontá-lo com a inutilidade do sacrifício, com o nulo valor de um acto simbólico, com a ideia de que se Cristo estivesse ali escolheria poupar as vidas daqueles que vão morrendo enquanto Sebastião não negar a sua fé. Sebastião acaba por pisar o ícone e até ao fim dos seus dias torna-se um japonês de religião e de costumes.
No cinema esta é a terceira vez que se faz uma adaptação do livro de Endo. Em 1971 Matsuhiro Chinoda realizou SILENCE e em 1996 João Mário Grilo assina OS OLHOS DA ÁSIA. 
Teizo Matsumura no ano 2000 (opera) e James Mac Millan em 2002 (Sinfonia nº 3 “Silence”) complementaram a componente musical do tema.
Posto isto resta saber o que é que Scorsese acrescenta a tudo aquilo que já foi feito em relação a este momento literário extraordinário. Uma excelente fotografia e uma narrativa cinematográfica composta por requintados quadros. De resto o estereotipo dos japoneses que ora são criaturas medonhas em estado quase selvagem ou tiranos sanguinários indiferentes ao sofrimento dos outros. Enquadramento histórico, zero. O aspecto do diálogo ou choque cultural é pura e simplesmente minimizado, reduzido a meia dúzia de balelas sobre religião. O conflito interno de Sebastião amplamente documentado no livro original em Scorsese limita-se à multiplicação das várias caretas de Andrew Garfield. Se quiser saber o que vai na cabeça de Sebastião, o espectador que adivinhe.  
Por fim o filme é demasiado longo, repetitivo, chato e inconclusivo. O original de Chinoda conta a mesma história em menos meia hora. As cenas dos cristãos massacrados bem como o acto da apostasia repetem-se vezes sem fim até à náusea. Por fim a narrativa abre uma série de portas que não consegue fechar e aponta vários caminhos que depois acaba por não percorrer. Vale a indústria americana carregar aos ombros o sucesso e a originalidade para justificar e fazer crescer a sua margem de lucro. Mas não vale tudo na luta pela ocupação da barraca das farturas.


Artur

terça-feira, 14 de março de 2017

O ANJO DA HISTÓRIA VOLTA A ATACAR




Ocorreu-me que Portugal necessita desesperadamente de uma guerra civil. Ou melhor, não, não precisa de uma guerra civil; precisa, isso sim, de uma revolução como deve ser, à moda antiga, com munições reais em vez de cravos nos canos das G3. No livro "A Balada das Praia dos Cães" de José Cardoso Pires - cuja acção decorre no final dos anos 60 - uma personagem declarava ao Inspector da PJ que "Portugal é um país pasteurizado a merda !". 50 anos passados, depois de termos percorrido todo o círculo, de termos feito a circum-navegação, de termos dado pinotes e cambalhotas, depois de uma Revolução e de milhentos actos falhados, estamos outra vez no mesmo sítio "pasteurizados a merda". Portugal precisava, dizia eu, de uma revolução a sério, daquelas com pelotões de fuzilamento em cada esquina, que nos livrasse para sempre de banqueiros e ex-banqueiros; da rapaziada dos "off-shores"; das bancadas parlamentares do PSD e do CDS ( e das respectivas "jotas"); de alguns parlamentares da chamada "esquerda democrática"; de grande parte dos sindicalistas; de alguns juízes e magistrados que envergonham diariamente a Justiça, emporcalhando-lhe o nome; dos empresários que diariamente, de dedinho em riste e vozinha aflautada nos pregam moral e bons costumes;  de "jornalistas" avençados, desleais e corrompidos; de alguns professores universitários que passeiam a sua ignorância e incompetência por debaixo das surradas e sebentas togas com que assistem aos actos oficiais; enfim de toda uma escumalha de traidores, parasitas e idiotas que enxameiam a nossa vida pública, poluindo-a com a sua bovina estupidez. Podemos sonhar que a nossa Place de Grève é o Rossio, com os rios de sangue derramados pela gentalha a escorrerem alacramente pela Baixa Pombalina e indo desaguar no Terreiro do Paço, onde formariam um lago pantanoso logo aproveitado pelos turistas que, descalçando as xanatas, os sapatos de ténis e os borzeguins variados logo se poriam a chapinhar alegremente no sangradouro, borrifando-se uns aos outros com os escarlates e odoríferos pingos derramados pelos modernos miguéis de vasconcelos. Depois de cumprido este doloroso dever, poderíamos então renascer "inteiros e limpos", numa nova madrugada, prontos a recomeçar. Portugal seria então o espanto, a admiração e a inveja do Mundo e passaria por cima do V Império de Vieira para o VI Império, passando a chamar-se República Messiânica de Portugal: seria neste torrão abençoado que o Jesus Cristo Redentor voltaria para nos absolver dos pecados e cumprir a Promessa que a sua natureza simultaneamente humana e divina implica.
Ou esta nova Revolução acontece, ou só nos resta esperar por uma tempestade de merda que nos arraste a todos  para o rio Tejo, em direcção ao mar aberto.