Somos feitos de uma fragilidade
tão intensa e tão permanente que até irrita pensar nisso. E por isso não
pensamos. Ficamos de lado a representar o nosso papel, a fingir forças que
nunca tivemos a convencermo-nos da alegria e da felicidade que nos disfarçam as
lágrimas que vão caindo no escuro. A fragilidade estende-se como uma estrada
paralela à existência, um abismo terrível e tão profundo que temos poucas
hipóteses uma vez caídos lá para baixo. Vamos equilibrando sobre um muro
estreito para que isso não aconteça, viramos as costas ao mar e assim ele não
existe. Mas está lá…está sempre lá. Por isso, e não tão poucas vezes como isso,
de vez em quando há alguém que escolhe cair, tombar para as terras do “não
aguento mais” e do “quero que tudo isto se foda, vou mas é mudar de ares que
por aqui já tudo deu o que tinha a dar”. E partimos… antes do tempo, antes da
vez, mais cedo para não chegar atrasado, mas vamos de uma vez por todas. Nós,
os outros, os que cá ficam, arrepiam-se, choram alguém que se matou, cumprem os
rituais, borram-se de medo. Porque todos temos o mesmo abismo todos os dias, o
mesmo abismo que caminha paralelo a nós. E não sabemos quem será o próximo. Um
pé mal colocado, um dia carregado de “nãos”, um problema sem solução, uma
conversa que não chega a acontecer, uma tristeza da qual não regressamos e é
tudo. Pode ser qualquer um. De cima de uma ponte, de dentro de uma caixa de
comprimidos, depois de uma bala com o nosso nome, do alto de um prédio. E não
há “porquês”, nem estudos eruditos, nem especulações decorativas, nem tiradas
filosóficas nem lágrimas que cheguem. Há apenas uma enorme evidência que é o
vazio de um espaço. Há apenas um ser que deixou de estar, que deixámos de ver,
com quem não voltaremos a rir. Um ser que se quis ir embora e partiu. Um pavio que
não ardeu mais antes de explodir.
É nestas ocasiões que revejo
familiares e amigos, é nestas alturas que corro desesperado a abrir a caixa do
amor deles por mim e de mim por eles. Para me certificar que não caio, que não
vou já, que não me apetece sair mais cedo por vontade minha, para olhar para
trás e avaliar o comprimento do meu pavio. Para me certificar que ainda estão
cá todos e eu com eles.
Quando olho para trás reparo que
já não foram tão poucos como isso. Pessoas como eu, os mesmos sorrisos, as
mesmas lágrimas, o mesmo medo. Porque
afinal de contas um suicida é apenas um viajante apressado, alguém que resolve
saltar algumas estações antes da estação final. Para trás deixa alguma tristeza
naqueles que o amaram e discursos que louvam a sua coragem ou a sua cobardia
consoante os casos. Em comum todos querem apenas afastar-se o mais possível do
seu precipício pessoal, da sua vertigem particular.
Não te julgo nem te louvo, espero
apenas que tenhas encontrado a paz lá nesse lugar para onde foste. E que o peso
de existir se tenha tornado mais leve nos teus ombros. Ri-me várias vezes
contigo, gostava de ti e é tudo. Adeus Carmo. Um destes dias a gente volta a
ver-se.
Artur