quarta-feira, 26 de novembro de 2014

ORIENT EXPRESS




"Coisas que dão prazer : encontrar um grande número de contos que não lemos antes. Ou adquirir o segundo volume de um conto de cujo primeiro volume gostámos. Mas muitas vezes é uma desilusão."

"Na Primavera, a madrugada - quando lentamente a orla da montanha se tinge de vermelho, e nuvens  de púrpura-crisântemo vagueiam no céu. No Verão, a noite - noites de luar, é claro, mas também o escuro da Lua, é muito belo quando os pirilampos dançam por todo o lado num voo labírintico. E também é maravilhoso ver um ou dois desses insectos voarem através do escuro, brilhando suavemente. A chuva a cair numa noite de Verão também causa prazer. No Outono, o cair da tarde - o sol abrasador mergulha muito próximo da orla da montanha, e até mesmo os corvos, a três e quatro, apressando-se a chegar aos seus abrigos, são uma visão comovente. E, quando o sol desapareceu, como se torna inexprimível escutar o vento na escuridão crescente, e a canção dos insectos de Outono. No Inverno, a madrugada - se a neve cai, é claro, é sumamente agradável, mas também é perfeito se houve gelo branco e puro, ou se apenas estiver muito frio, e as pessoas se apressam a acender as lareiras. Mas é desagradável, à medida que o dia decorre e o ar se torna mais quente, como o fogo da lareira vai morrendo até se tornar cinza fria"

" É bonito o modo como as gotas de água gotejam tão grossas sobre as plantas do jardim depois de uma noite de chuva no nono mês, quando o sol da manhã brilha fresco e estonteante sobre elas. Onde a chuva se agarra ás teias de aranha penduradas numa vedação ou nos beirais, forma belas cordas e comoventes cordas de gotas que são como pérolas brancas. Também gosto do modo como, quando o sol brilha alto, os arbustos de trevos, todos dobrados ao peso das gotas, vertem o orvalho, e um dos ramos subitamente se levanta embora nenhuma mão lhe tenha tocado. E também acho fascinante que coisas como estas não deliciem outras pessoas."

"Nada é mais maravilhoso que a simpatia - num homem claro, mas também numa mulher. Pode ser só uma nota passageira, pode não ser nada de profundamente sentido, mas ouvir alguém dizer de uma situação triste "Que tristeza para ela", ou de uma circunstância tocante para alguém "Pergunto-me como se sentirá", torna-te mais alegre do que ouvi-lo dizer face a face. Desejo sempre encontrar um modo de tornar essa pessoa sabedora da sua resposta simpatética. Não te sentes particularmente surpreendido e comovido, é claro, no caso de alguém em quem podes confiar que sinta contigo ou te visite nessas ocasiões. Mas se alguém inesperado responde à narrativa dos teus desgostos com palavras reconfortantes, isso enche-te de prazer. É algo tão simples de fazer, mas tão raro..."

Sei Shonagon "The Pillow Book", Penquin Books, 2006

1. "Makura No Soshi" (O Livro de Cabeceira, Sei Shonagon, 1002)

É um livro de observações e apontamentos escritos por Sei Shonagon durante o tempo em que foi dama de companhia da Imperatriz Consorte Teishi no século XI, na vigência da era japonesa Heian. Os estudiosos calculam que tenha sido terminado no ano 1002. A escritora nele incluiu uma grande variedade de listas, pensamentos pessoais, descrições de acontecimentos importantes, poesia e comentários sobre os seus contemporâneos. Segundo Meredith McKinney, tradutora da versão inglesa que estou a seguir (Penguin Books, 2006), o livro foi composto maioritariamente em caracteres hiragana, e muitos dos seus contos foram escritos numa forma literária graciosa, particularidade que a tradutora soube conservar, tanto quanto me é dado perceber. Toca-me particularmente o sofisticado sentido poético da autora e o modo como funde essa sosfisticação com uma peculiar intuição para a singularidade das coisas, já que, se compararmos a sentimentalidade do "mono no aware" (o pathos dos entes) tal como a encontramos nos "Contos de Genji", a mesma beleza do mundo vem a ser revelada através do uso do conceito "okashi" (belo, agradável,prazenteiro) nesta peça. Começando com a exaustividade da "coleção de coisas similares" e o modo como é representada tanto para vermes como para flores ou árvores, "coisas horríveis" e "coisas de beleza", as deambulações de Sei Shonagon observam a natureza da vida quotidiana e as quatros estações do ano, descrevendo em aforismos longos "as suas memórias" (o seu diário), que olha para a sociedade da corte imperial que rodeia a Imperatriz Teishi, a quem serviu, com um inusitado sentido crítico. Mas, aquilo que mais me toca neste livro, mais ainda do que a sofisticação que evidencia e a perenidade intemporal da beleza das palavras e das coisas que retrata e descreve, é ouvir essa voz que vem de tão longe e se faz escutar como se falasse hoje. Imagino que traduzir este livro tenha sido também traduzir a voz e a presença da sua autora como no dia em que escreveu as palavras que chegam até nós. Tal significa voltar a apresentar aos nossos olhos o mundo vivido então, tão longínquo e tão próximo como são todas as coisas humanas. Por outro lado, verifico a sua surpreendente modernidade : parece ter sido escrito como um fluxo, já que muitas vezes se assemelha à corrente de um rio, similar às modernas correntes de consciência e, tal como a corrente do rio, imparável. Contém a intimidade típica e a impulsividade de um diário, e a sua voz é a voz do diário - insconcientemente dirigindo-se a um Outro familiar que é e não é uma versão de si própria. A forma directa e íntima dessa voz, a ausência de uma auto-absorção diarística, e a assumpção de que o prazer de que fala será compreendido e partilhado por um "tu" não-especificado, conduz a obra em direção a uma espécie de conversação com o leitor. Curiosamente, o livro não procura ser literário : Sei Shonagon encara-nos de frente através dos séculos, assumindo a familiaridade consigo e com o seu mundo, compelindo-nos a convergir emocional e intelectualmente com a indescritível beleza e profundidade da sua intuição.




2. "The Pillow Book" (O Livro de Cabeceira, Peter Greenaway, 1996)


Pintados a negro sobre os seios, os grafismos japoneses tornam-se vermelhos-sangue sobre o ventre de uma bela asiática. Este "travelling" aproximado do filme "O Livro de Cabeceira", de Peter Greenaway, desce até às coxas dissimuladas pela mão púdica da mulher pintada como uma ninfa renascentista. O modelo deste quadro vivo pretende ser Sei Shonagon, a tal dama da corte imperial de Quioto, de vestido estreito e longo. Mas essa inocente cronista teria dificuldade em reconhecer-se no espelho sulfuroso que lhe é mostrado por uma discípula moderna, revisitada por Greenaway. Para além do culto apaixonado votado a essa escritora do ano 1000, a infância japonesa de Nagiko é inscrita sob o signo de um duplo patrocínio : o pai calígrafo que, em cada aniversário da filha, traça amorosos mitogramas na face e na nuca da criança; e o editor dos escritos paternais, uma espécie de chefe de clã dispondo, a seu bel-prazer, do pai e da filha. Marcada pelo passado, Nagiko, que se tornou modelo em Hong Kong, só encontra prazer com aqueles que desenham belos grafismos no seu corpo. Até ao dia em que um inglês lhe oferece o corpo para que seja ela a inscrever os seus próprios textos.. Os seus amantes tornam-se então os suportes vivos de uma singular saga literária. Depois de revisitar a tragédia de Romeu e Julieta e de enviar ao editor treze livros, escritos no corpo de outros tantos amantes, o último dos quais comporta a morte desse tirânico rival, o filme arquiva-se como a soma de um bibliófilo esclarecido. Nem crónica sobre a Ásia actual, nem teatro de uma patologia criminal, "O Livro de Cabeceira" abre-se a uma meditação sobre a fugacidade da existência e da arte, esse sentimento do efémero que é nos nossos dias avivado pela perda do suporte-papel que implicam as novas tecnologias de comunicação e constitui um fecundo desmentido da propalada morte do texto escrito. Aos olhos de Greenaway, o mitograma chinês ou japonês demonstra que é possível uma síntese entre a figura e o escrito, a palavra reclamando o seu estatuto de espelho do mundo, como signo polissémico. Mais ainda: anunciando um vocabulário plástico enfim autónomo para o cinema, Greenway parecia anunciar em 1996, cem anos depois dos filmes dos irmãos Lumière, que o cinema ainda não tinha começado. Como é possível não se deixar deslumbrar por esse écran no écran, cuja técnica sincroniza mais legivelmente o passado e o futuro : essa face da heroína criança, decorada pelo pincel do pai, incrusta-se sobre o corpo de adulto que o seu amante pinta vinte anos mais tarde. Como esse deus cem vezes invocado por Greenaway que "pinta os olhos, os lábios e o sexo" e, se a criatura lhe agrada, consente em assinar a sua obra.



terça-feira, 25 de novembro de 2014

O PRESO Nº 44

Certo dia, um pai passeava com o seu petiz pelo Jardim Zoológico.Pararam frente à jaula das hienas. O pequeno perguntou ao progenitor : - Pai, que animal é este ? O pai, didáctico e informado, esclareceu - Este animal, meu filho, chama-se hiena e provém das savanas africanas. Alimenta-se de carcaças de outros animais e dos seus excrementos, tem relações sexuais uma vez por ano. Ah, e ri-se muito... Deslumbrado com a sabedoria do pai, o pequeno não deixou de retorquir :  - Mas pai, se a hiena come a merda dos outros animais e só fode uma vez por ano, ri-se de quê !?


Lembrei-me desta história perante a visão pornográfica do modo como os gajos e as tipas de direita se têm regozijado com a prisão de José Sócrates, como se eles próprios fossem virgens impolutas, como se não estivessem atascados até aos imundos pescoços no lamaçal que ajudaram a criar, como se não estivessem implicados em todos os esquemas de aldrabices, vigarices, trafulhices e roubalheiro com que têm espoliado o país, deixando à míngua o povo português que condenaram à pobreza e à desilusão, deliberadamente. É como se estas hienas não viessem a percorrer um caminho que vão semeando de merda e que convém percorrer com andas, como se esta canzoada famélica não viesse um dia também ela a arder no Inferno da sua própria decrepitude, e a escorregar no seu próprio vómito para o caixote do lixo da História. Como se estes traidores à Pátria, que se babam agora de prazer, não viessem também eles um dia a serem chamados a prestar contas pelos crimes que praticaram (eles mesmos ou por interpostos chacais). Como se estes novos e velhos impotentes não fossem eles mesmos, todos eles, o Preso nº 44.

sábado, 22 de novembro de 2014

HORIZONTE



Podia ser uma nave espacial a vogar pelo espaço da consciência colectiva…podia ser o depósito da frota onde se encontram a memória e a identidade…podia chamar-se “Resistência”. E felizmente a “Resistência” está de volta cumprindo o seu papel, entre revisões de canções antigas e novas propostas, reforçando a imprevisibilidade do futuro. Com “Horizonte” alinham-se onze temas compostos por uma equipa de onze elementos, músicos profissionais com trajectos individuais e agendas preenchidas que ocasionalmente se conseguem encontrar e trabalhar em conjunto. Momentos únicos num projecto único no panorama musical e cultural do país. “Resistência” é o seu espírito e nunca um conceito foi tão apropriado como este.
Podia ser uma banda de uma geração centrada sobre si própria e a sua história, instalada na obra dos seus elementos e na sua notoriedade. Em vez disso o projecto estabelece pontes com passado, na medida em que assinalando a influência trovadoresca (a expressão do acústico, a madeira das guitarras, a importância das palavras) e recuperando autores mais antigos (José Afonso), consegue cativar e convencer as novas gerações que não hesitam em encher auditórios e vibrar com as músicas feitas quando ainda não eram nascidas.
Num tempo em que linguagem, identidade, sociedade, democracia, inconsciente colectivo, individualidade, humanismo e liberdade são conceitos vagos empurrados para uma linguagem subversiva quase proibida, a resistência mantém essa chama que arde na imensa escuridão. Canta-nos canções de Liberdade, ensina-nos que tudo é possível quando damos as mãos, conta-nos histórias de amor. As canções de Rádio Macau, Xutos e Pontapés, Delfins, Madredeus e Banda Cósmica, Tim ou Pedro Ayres, são os elementos dessa pálida aguarela onde uma carrinha antiga segue na estrada a caminho do horizonte.
A sonoridade única é a habitual composta por seis guitarras, um baixo, uma bateria, percussões e voz.
Assistir a um concerto desta banda é uma experiência única e inesquecível. Todos o devíamos fazer pelo menos uma vez.


Artur 



quarta-feira, 19 de novembro de 2014

CARTA

Exmo. Sr. Dr. Paulo Portas, ilustríssimo Presidente do CDS-PP e Vice-Primeiro Ministro da Nação de Portugal:


Ouso dirigir-me a V. Exa. na qualidade de militante deste nosso pequeno-grande partido, nesta hora de grande responsabilidade histórica para todos os centristas brilhantemente  capitaneados pela figura de grande estadista e timoneiro que V. Exa., Dr. Paulo Portas tem sabido como ninguém interpretar. Grande é o fardo de salvar o nosso Portugal, mas, como se costuma dizer, "quando a tormenta é grande é que os grandes capitães se revelam". Não é por acaso que esta minha prosa está cheia de alusões a temas marítimos: todos conhecemos as preferências de V. Exa. por assuntos do mar, de submarinos, navios avulsos e marinheiros, essa nobre estirpe descendente dos grandes navegadores de antanho. V. Exa. é daqueles que, quando vê um cacilheiro, se põe logo a imaginar navegações para a Índia, o Extremo Oriente, os Brasis, as Austrálias, prova de uma grandeza de alma que o nosso Portugal, o Mundo, o Universo e até mesmo a Europa lhe reconhece, bastando para tal cruzar o olhar com a sua fulgurante figura, com os seus olhos de águia e porte de leão, com o dedo em riste com que ameaça socialistas e comunas, símbolo moderno da espada com que Afonso de Albuquerque amedrontava cafres e fazia vergar de medo indianos e árabes. Enfim, um grande estadista, um Mouzinho de Albuquerque dos tempos modernos.
Mas, note bem V. Exa., não foi para lhe enaltercer as virtudes - sobejamente conhecidas de todos e por todos proclamadas e celebradas - que lhe escrevo; antes me dirijo a V. Exa. para lhe dar conta da profunda inquietude que avassala meu coração centrista e da abissal angústia que me não deixa dormir e cujas causas passo a expôr: Depois da genial performance do Dr. Pires de Lima no Parlamento, onde revelou os seus dotes de comediante, capazes de embaçar os consabidos talentos histriónicos de um Vasco Santana, de um António Silva e, vá lá, de um Herman José (com o pequeno incómodo de este último não ser dos nossos), os esquerdelhos e os escribas do reviralho têm-se vindo a aliviar de aleivosias e maledicência a granel, cobrindo de pilhérias e objurgatórias o genial cómico e brilhante ministro (não esqueçamos que foi ele o autor do "milagre económico") : que é ridículo, que não se respeita a si próprio, que é patético, que não devia abusar do produto que produzia antes de ser chamado a "milagrar" a economia portuguesa (uma conhecida marca de cerveja que agora não me ocorre); chamam-lhe o Pires de Tremoços, dizem que perdeu a tineta, entre outros dislates indignos de serem aqui reproduzidos. Mas, como se costuma dizer, "os cães passam e a caravana ladra", ou qualquer coisa do género. O mais grave de tudo, aquilo que sinceramente ofende, magoa e humilha, é essa gentalha esquerdista e fedorenta andar a dizer que o Ministro Pires é contra "taxas" e "taxinhas" do António Costa em Lisboa, mas nada tem contra os "tachos" e "tachinhos" com que a actual maioria (a nossa, pois claro) tem colonizado e vampirizado o aparelho de estado, enchendo-o de bois  boys e tipas incompetentes, rapazolas e rapariguinhas acabados de desmamar e arrancados à pressa às actividades lúdicas das juventudes partidárias e colocados em altos cargos, com vencimentos que triplicam aqueles que são auferidos por pessoas qualificadas, competentes e com décadas de serviço ao Estado. Isto, rosna esta gente medonha, ao mesmo tempo que se despedem enviam para a requalificação dezenas de milhares de funcionários públicos. Não compreendem, não querem compreender esta brilhante estratégia de redução de desemprego levada a cabo por este governo, e que visa sobretudo combater a alta taxa de desemprego jovem, flagelo de uma geração de jovens promissores, altamente qualificados e dignos militantes dessas escolas de excelsas qualidades e elevadas virtudes que são as jotinhas (principalmente a nossa JC). Para finalizar, queria ainda referir o lapso cometido pelo milagreiro ao referir o banho que o ex-Ministro Manuel Pinho teria tomado com a actriz francesa Catherine Deneuve (o santo Pires de Lima enganou-se: não foi com Catherine Deneuve que o Pinho se banhou, mas com aquele trangalhadanças campeão olímpico de natação). Toda a gente sabe que a Madame Deneuve, símbolo internacional de elegância, beleza e talento (capaz de rivalizar com o nosso Pires de Tremoços Lima, porra, até eu me engano) é um fetiche particular do nosso CDS-PP (a Catherine Deneuve é nossa, não é de Moscovo, como diziamos nos negros tempos do PREC), mas, qualquer referência a essa actriz é logo motivo para novas aleivosias e insinuações maldizentes. A evitar, portanto.


Subscrevo-me com a devida vénia

JACINTO LEITE CAPELO REGO

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

SE NÃO AGORA, QUANDO?




(à memória de Primo Levi )

Vim para aqui em pequeno com os meus pais e os meus irmãos. Deram-nos uma extensão de terra onde poderíamos ficar a viver e uma linha, um perímetro que não podíamos ultrapassar. Todos os anos aparece cá uma delegação do Presidente, ou chefe da tribo dos brancos. Sentam-se numa mesa e registam quantos somos, quantos morreram e apontam tudo nuns papéis. Antes de se irem embora garantem que não voltarão a encurtar esta extensão de terra onde nos deixam habitar. E todos os anos nos retiram um bocado mais. Tenho filhos no colo e adormeço à noite a ouvir as barrigas da fome, os cânticos dos guerreiros embriagados, os gemidos dos doentes. Em cada ano que passa aumenta um ano de fome e miséria em nós. Fora da reserva os colonos e os animais embriagam-se da vida que desaparece do lado de cá. Os mais velhos envergonharam-se com a derrota e assinaram a capitulação. Nem querem ouvir falar em guerra. Mas se rapidamente não se começar outra guerra vamos desaparecer todos até não sermos nenhum e a reserva não passar de um terreno vazio varrido pelo vento. Não sei se consigo continuar a ver o meu povo a morrer um pouco todos os dias sem fazer qualquer coisa. Antes morrer defendendo a vida do que viver na antecâmara da morte.
O barco é uma canoa gigante onde nos amontoaram uns por cima dos outros em prateleiras de madeira enquanto atravessamos o grande lago. Os cheiros misturaram-se num só, um permanente sentido de morte que nos vai abafando a raiva. Ás vezes vêm-nos buscar. Os insurgentes ao princípio, depois os doentes e por fim todos os mais fracos. Já não lhes servem para nada e aliviam o peso na canoa gigante. Sabemos, aqueles que tiverem a sorte de chegar ao fim desta viagem, que seremos vendidos, que nos levarão para outros lugares como escravos. Mal me consigo mexer nesta prisão de madeira entalado entre outros dois corpos que respiram envergonhados. Ontem deitaram mais um  borda fora. Ouvi o corpo dele a bater na água. Os gritos terminaram no mesmo instante. Depois, o silêncio. Aquele nunca mais volta a sofrer. Estranhamente começo a desconfiar que teve muito mais sorte do que eu.
Ninguém consegue explicar bem, muito menos compreender, a razão de tanto ódio. Começaram por nos alojar a todos no gueto, pouco depois de nos encerrarem as lojas, queimar os livros, obrigar a andar identificados com uma estrela de David na roupa. Sucederam-se as rusgas, as prisões, a algazarra e todas as línguas do ódio nos lamberam não escapando ninguém. Espancam velhos, matam crianças. Um grupo de homens não aceitou esta matança sem sentido e pegou em armas contra os alemães. A ferocidade deles aumentou em sucessivas vagas cada vez maiores de soldados e explosões. Já não há grandes dúvidas. O desequilíbrio de forças é absurdo. Temos que sair daqui de Varsóvia. Fugir para outro lugar e continuar a resistir. Porquê? Se calhar por estarmos vivos e querer continuar assim. Se calhar porque o que todos os homens desejam no fundo é viver em paz. Principalmente porque não há razão nenhuma para uma população inteira ser exterminada só porque uma outra parte dessa população assim o determinou. Um camarada de armas despede-se do pai na noite antes da partida. O velho, um rabi, não vê com bons olhos a opção do filho, não aceita a violência por mais que veja o seu povo a sucumbir às mãos dela. O filho pergunta-lhe: e quando estivermos todos mortos? Fará sentido alguma coisa?

    Se não for eu por mim, quem será por mim?
    E mesmo quando eu pensar em mim, que sou eu?
    E se não agora, quando?

Artur


DUAS NOTAS

Ou melhor, uma pergunta (já respondida no seu próprio enunciado) e um pedido:

1. Pode alguém ser um académico internacionalmente reconhecido e, em simultâneo, ser infinitamente estúpido ? Pode esse mesmo alguém lecionar em prestigiadas universidades europeias e contemporizar com falta de carácter, desonestidade intelectual, propaganda oca e vazia, cinismo rasteiro e vulgar, mendácia e grosseria ? Pode, sem dúvida que pode.

2. Sua Excelência, o Presidente da República, Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva, acaba de condecorar com a Ordem do Infante o famoso Durão Barroso, criatura multiforme que passou de cherne a animalzinho de estimação da Angela Merkel, de mordomo de George W. Bush na Base das Lajes ao mais deprimente presidente da Comissão Europeia de que há memória. A coleira O colar fica-lhe a matar : é o corolário, a cereja no topo do bolo de uma carreira política lastimável. Por isso lhe imploro, Senhor Presidente da República: nunca, por nunca, me condecore. Por tudo quanto tem de mais sagrado (a saber, e por esta ordem: V. Exa, V. Exa, V.Exa, etc.), nunca me chame ao Palácio de Belém para me atrelar a esse jugo de comendas e condecorações que deslustram quem as recebe. Muito obrigado pela atenção.