As suas memórias mais
antigas remontam à segunda metade da década de 60 do século passado.
Posto assim,
poder-se-ia assemelhar aos pensamentos datados por um idoso. Mas não é o caso, e
nem por isso lhe parecia há tanto tempo assim. Apenas se recorda razoavelmente
bem dos primeiros anos da sua vida, numa época em que mesmo nas zonas urbanas, o
acesso a coisas como televisão ou outros electrodomésticos, telefone ou
automóvel, não estava ao alcance de todos. Telemóvel só no sapato do “Olho
Vivo” (Get Smart), computadores portáteis eram ficção científica, e a internet seria um embrião na cabeça de algum visionário.
A história começa numa
clínica perto da cervejaria Portugália na Almirante Reis, em Lisboa. Volta e
meia, e para justificar a forma como num ápice desaparecia a cerveja do seu
copo, caneca, ou girafa, gostava de invocar a prestigiante localização do seu
nascimento, a escassos metros deste marco cultural da capital. Era uma bem
sucedida relação desde o primeiro berço, desprovida de qualquer arrufo e
reforçada por anos de dedicação à bebida fermentada mais antiga do mundo.
Foi no entanto, numa
pequena vila entre Lisboa e Sintra, que deu os primeiros passos e se deu à
vida. Uma vila que tinha as suas fronteiras muito bem definidas, como todas as
outras à volta de Lisboa, com pinhais, hortas e amplos terrenos abertos a
rodeá-la, cortados por pequenas estradas, onde se materializou a oportunidade
de passar muitas manhãs e tardes, a explorar aquilo que espontaneamente começou
a chamar a Selva.
Para um miúdo que
dividia a sua vivência diária, entre um prédio de sete andares, onde morava com
os seus pais, e outro de três, o da ama e do marido, aquelas incursões pela
Selva eram o início da descoberta do desconhecido, proporcionando-lhe sensações
que os grandes exploradores portugueses do século XIX, Hermenegildo Capelo,
Roberto Ivens, Serpa Pinto, ou Silva Porto, tinham certamente experimentado ao
desvendarem os segredos da África profunda, pura, intocada, palco de aventuras,
deslumbramentos e dificuldades inimagináveis - claro que de uma forma
muitíssimo mais suave, como convém a um miúdo de um, dois ou três anos, que
tinha a garantia da protecção do gigante amigo, o Reis, ou a escassos minutos
de distância dali, de um copo de leite e pão com manteiga, ou de um divã para o
descanso da excitação destas importantes expedições.
As formigas, joaninhas,
escaravelhos, minhocas, lesmas podiam estar na lista dos “Big Five”, mas isso
variava com os menus do dia servidos pela Selva. O Reis, o seu companheiro de
aventuras mais velho - 60 anos mais velho - tinha uma paciência inabalável e
estava sempre pronto a responder ás suas perguntas oportunas, muitas, demasiadas,
imparáveis como o cachão das cataratas de Niagára, e carregadas de carácter
profundamente científico, como aliás faria qualquer verdadeiro interessado nos
mistérios da vida.
Reis tinha sido atleta
do Ginásio Clube Português na década de 20, como ginasta das disciplinas mais
exigentes: argolas, barra fixa, barras paralelas e assimétricas, cavalo com
alças e outras, guardando orgulhoso um espólio de medalhas e também de
fotografias, onde se exibia revestido numa aura mágica de actor de cinema, em poses
dignas de Rudolfo Valentino, vestido no equipamento branco da modalidade e num
corpo irrepreensivelmente definido e tonificado. Com mais de 60 anos, continuava
a dar muita importância a caminhadas e ao contacto com a Natureza. Isto apesar
de fumar bastante - ainda era uma época em que os malefícios do fumo estavam
por divulgar e muito menos ainda, existiam as proibições ou restrições ao seu
consumo.
Na Primavera as incursões
à Selva, implicavam a procura de víveres, o que acrescia mais um interesse à
aventura do desbravamento – turiões, os rebentos dos espargos, bem tenros e
saborosos, serviam para patrocinar as solas gastas nestas demandas diárias, se
bem que os chilreios dos pássaros e o cheiro do pinho, já contribuíssem o
bastante para que aqueles momentos valessem por si. Imagine-se entretanto a
paciência do companheiro mais velho ao ver o outro numa excitação imparável:
“Isto são espargos?... e isto?... e isto?...” e por aí fora no meio de um
turbilhão de capim voador até à exaustão total, não do santo, que nunca se
cansava daquele processo de aprendizagem, mas do sacana do puto, que só quando
estava quase morto se rendia, com as mãos e cara completamente sujas de terra e
cheias das mais variadas ervas. Espargos, é que nada.
Todas as manhãs havia
que levantar cedo, mas essa parte era-lhe fácil. Não dava por nada meio perdido
no limbo do sono, até descer pelo elevador e chegar à porta da rua, lavado e
vestido como que por um toque de magia da fada mãe. Depois, tomava o comando e
conduzia-a pela mão, num gigante cabriolet de plástico laranja, preso por um
fio à outra, cujo som calçada abaixo, se sobrepunha facilmente a qualquer
veículo de escape livre com que se cruzasse. Três quarteirões à frente, já o
passeio estava livre para a sua passagem, pelo respeito que o som de um trovão
rasteiro, inspirava muito antecipadamente.
A chegada à casa da
ama, no mesmo prédio onde trabalhava a mãe, era sempre assinalada com pompa e
circunstância – ele era o pequeno imperador daquele domínio, paparicado pelas
colegas da mãe que faziam questão de lhe prestar vassalagem, com mimos da mais
variada ordem. Esperança, uma das mais chegadas amigas da mãe, era uma das suas
maiores bajuladoras, de olhos azuis muito abertos e sorriso escancarado. Ele
detinha um grau de importância era tal, que a própria chefe dos serviços dos
correios, saía do seu gabinete para lhe dar os bons dias. Depois lá ia para a
casa da Nênê e do Reis, dois andares acima.
Eram um casal muito
unido, e zeloso um do outro. O miúdo nunca lhes ouviria uma palavra azeda ou a
mínima discussão durante os anos que lá passou. Carregavam no entanto, o
desgosto velado de nunca terem tido filhos.
A vida tem destas
coisas, dá demasiadas vezes filhos, a quem não os quer, sabe ou pode criar, e a
outros nega-lhos, apesar de terem todas as condições de harmonia emocional e
material, e de os quererem, mais do que a qualquer outra coisa.
Sem dúvida que aqui
quem ficou a ganhar foi o miúdo, que recebia com juros de décadas a dedicação
de dois seres que esperavam há tanto tempo uma oportunidade para criar um filho.
Tinha sido a Zeca, a chefe da estação dos correios, a sugerir à mãe dele quando
lá foi colocada, a D. Inês como ama do pequeno.
O almoço acontecia
normalmente com as mãos do petiz na água limpa e morna do lava-louça de pedra, onde
flutuava naquele oceano imenso uma vasta armada de navios, fragatas e contratorpedeiros
em missão de patrulha, feitos a partir das pratas saídas dos maços de tabaco
vazios do Reis. Haviam naufrágios trágicos e batalhas épicas mas no final os
bons, comandados pelo Comodoro Minorca, ganhavam sempre. Só assim, entretido no
meio destes dramáticos cenários, sua pequena alteza admitia que a Nênê lhe
enfiasse qualquer coisa, goelas abaixo, já desesperada mas com muita e
inesgotável paciência…
Nênê era uma de catorze
irmãos. Nascida ainda no século XIX, em 1900, vinha de uma família transmontana
rica e influente, lá de Miranda do Douro. Ela contava muitos episódios da
disciplina rígida, aplicada pelo pai aos irmãos, irmãs e a ela própria. A
palavra do pai era tão sagrada para ela, como a palavra do “Pai do Céu”.
Raramente os irmãos pensavam contradizê-lo, e quando o faziam, eram corrigidos dura
e inesquecivelmente. Ela, as irmãs, e acima de todas a sua mãe, submetiam-se
completamente à vontade do pai, nunca se atrevendo a questioná-lo, e tratando-o
sempre com muito respeito, submissão e temor, por “paizinho”. No entanto, nas
palavras dela, não se denotava qualquer mágoa ou rancor. Apenas respeito e
saudade, apesar da noção dos erros cometidos por tanta rispidez e disciplina
espartana, para com a família directa. Parecia reconhecer que não era por
maldade – ele era daqueles homens duros que queria o bem dos seus, mas apenas admitia
a sua perspectiva, aquilo que no seu universo estava certo e fazia sentido.
Seria o que se poderia chamar hoje um tirano, mas sem noção de o ser, ou sem
noção de a sua vontade, poder estar a fazer mal áqueles que mais queria
proteger. Paradoxalmente, também não era um básico bruto arcaico. Mesmo na
província mais profunda e distante dos grandes centros urbanos do início do
século XX, fazia questão que as filhas tivessem alguma formação artística,
acabando uma delas, anos mais tarde, por ser professora de piano. Pois até
nesta particularidade o garoto tinha uma sorte incomum.
Nas visitas semanais que
ele e a Nênê faziam à irmã na Rua Ivens, em pleno Chiado, a aventura começava
pela viagem numa nave comprida a que chamavam comboio e que era apanhado na
doca de embarque do outro lado da rua, frente à casa. O prazer que tirava da
entrada naquele transporte gigante, muito maior do que o “carocha” creme do seu
pai que se chamava “agá-é” por causa da matrícula, para além do tamanho, incomparavelmente
mais fiável, estava num nível equivalente aos desbravamentos e descoberta dos
encantos, perigos e segredos da fauna e flora da Selva. Durante essa viagem de
comboio até Lisboa, o ponto alto era a travessia pelo túnel do Rossio, como se
a escuridão ao passá-lo, o fizesse passar por submundo misterioso e
desconhecido, onde coisas invisíveis e certamente terríveis poderiam estar-se a
dar à sua passagem. Assim sendo, e por não dar parte fraca naqueles minutos de
alguma apreensão que no entanto o fascinava, sentia-se investido de uma coragem
a toda a prova, recompensada no final com a luz suave e o ambiente
agradavelmente agitado na estação do Rossio, impregnado do cheiro característico
das estações de comboios.
A seguir era a subida
até ao Chiado e à casa da Inha e do Miranda - outro estímulo pelas coisas novas
que ali haviam e não se viam no Cacém, como se de outra realidade paralela se
tratasse.
À chegada à casa na Rua
Ivens, e após nova e muito apreciada vassalagem prestada ao
Nandinho pela Inha, e pelo Miranda, o ponto alto daquele dia - o piano!
Se a fantástica vista
para os telhados da baixa pombalina, para o castelo de S. Jorge e para o
movimento dos barcos no rio Tejo, ficando tempos em infindável contemplação à
janela não fossem suficientemente compensadores pela viagem até Lisboa… o piano
de cauda! Uma coisa enorme, escura, com incontáveis teclas brancas e pretas que
eram disponibilizadas, pelo fascinante ritual da abertura da tampa, e cujas
teclas ele se esforçava por esgotar em todas as combinações possíveis, nunca o conseguindo,
mas ficando sempre com esse objectivo para a próxima visita. Enfim, um ensaio
de música erudita permanente e irremediavelmente inacabado.
O regresso ao Cacém,
normalmente ao final da tarde, era feito numa nave igual áquela que o tinha
transportado até à estação do Rossio, eficaz no embalo que o adormecia de volta
para os braços dos pais, numa viagem sempre mais rápida do que aquela que o
tinha levado até ao Rossio.
Os dias sucediam-se
nestes primeiros anos, em sucessivas descobertas e aventuras, que ele
afortunadamente, tinha a sorte de ter quem lhe proporcionasse e claro, não
queria perder pitada.
O que o pequeno aventureiro ainda não sabia nem podia saber, era que o seu universo não iria ser assim para sempre, mas sem
dúvida que para já, aquele estava aprovado.
Hélder