quarta-feira, 24 de junho de 2009

UMA LONGA EXIBIÇÃO

Impreterivelmente às Quartas-Feiras entramos à hora do costume no restaurante do costume e caminhamos para a mesa do costume. Sentamo-nos num ritual fechado, como dois sacerdotes a caminho da reforma e passamos aos preparativos de sacristia antes da celebração da missa. Os copos, as paramentas, a página do sermão escolhido, tudo se desenrola no automatismo das mãos que recebem o cumprimento do mesmo empregado de sempre, a entrega da ementa, o olhar propositadamente demorado sobre a lista para escolher sempre o mesmo prato e a devolução. O jarro de vinho da casa chega sozinho, flutuando no ar em trejeitos de nave espacial não tripulada a evitar colisões com as cabeças dos outros clientes, a esquivar-se ao trajecto dos outros empregados, corpos celestes errantes que se intrometem n sua rota. Bebemos o meio copo do costume, antes de chegar a comida e grunhimos qualquer frase de circunstância. A última jornada do futebol, a política, o programa que deu ontem na televisão. Brevemente cada um diz qualquer coisa, estando isso muito de longe de qualquer modalidade de conversação. Raramente existe continuidade entre as nossas falas. Nunca percebi porquê ao longo de toda a minha vida e não vai ser agora que isso me poderá interessar. Às vezes até daria para rir ao observador exterior. “Nome? – Passo! Estado civil? Católico não praticante! Desportos preferidos? Dois filhos. Um com 12 e outro com 15.”
Finalmente a comida chega e com ela termina o sacrifício de dizer alguma coisa. A mastigação substitui a obrigação das palavras e o silêncio volta a reinar.
Nunca falámos directamente sobre coisa nenhuma, apesar de uma ou duas tentativas da minha parte. Não sei porquê, mas o silêncio entre nós foi sempre um dogma inquestionável, um muro intransponível. Uma regra que me foi imposta e que acabei por aceitar. Tal como a avó, que depois da morte do tio Vasco na guerra, insistia sempre em pôr o talher dele à mesa. Sozinha ou em jantares de família, o lugar dele estava sempre ali, observado de longe pelo seu retrato a preto e branco fardado, dias antes de embarcar para África. Ninguém dizia nada, ninguém questionava. Passou-me pela cabeça um dia pedir-lhe a travessa das batatas. O silêncio que se seguiu foi mais violento que uma chuva de artilharia. Mas ninguém disse nada. Nem a avó, nem tu quando chegámos a casa. A avó continuou a jantar com o tio Vasco até que foi para o lar. Durante algum tempo ainda reclamou: “Falta aqui um talher”. Até que percebeu que ninguém queria saber. Lá foi ficando, sem talher e sem vontade, a encolher para dentro como uma folha de Outono. Quando ela morreu levei o retrato do meu tio para minha casa. As minhas conversas com ele são muito mais animadas e emocionantes do que contigo. Se estivesse aqui a almoçar com o retrato à minha frente, podes ter a certeza de que se falaria muito mais. Agora percebo porque é que a avó o tinha à mesa a todas as refeições
Vêm os cafés e o ritual aproxima-se do fim. Dizes qualquer coisa sobre o tempo e eu respondo que as próximas eleições qualquer coisa. Assim como há pessoas condenadas a não se entender também há pais e filhos condenados a não comunicar. Constroem pacientemente ao longo dos anos uma vedação de silêncio, uma gramática com meia dúzia de regras e é suficiente. As relações, em vez de construídas, encenam-se como uma peça de teatro. Ensaiam-se durante anos para que tudo corra no automático no dia da representação. Há famílias inteiras que mais parecem óptimas companhias de teatro. Quem ganha com isto são os psiquiatras, que também têm direito à vida.
Logo à noite há bola na televisão, o apartamento não é muito grande mas chega para mim e para o gato. A Amélia cansou-se do silêncio e foi-se embora, mas julgo que tu ainda não te apercebeste disso. Vou abrir uma ou duas latas de cerveja e colocar o retrato do meu tio ao meu lado com o gato a dormir entre os dois. Vou ver o jogo sem som e deixar a casa entregue ao silêncio, interrompendo-o aqui e ali com um arroto cavernoso. O tio há-de rir-se, como eu. Na Quarta-Feira não te vou contar se o homem fardado se deitou com uma grande bebedeira, nem se o gato saltou com o meu arroto cavalar especial, nem se todos nos desatámos a rir que nem uns doidos no fim. Na Quarta-Feira vou representar a peça do almoço em homenagem da “Angústia para o Jantar” do Sttau Monteiro. Uma peça muito menos interessante e chata de ver. Apesar de tudo com um recorde invejável de exibições.
ARTUR

sexta-feira, 19 de junho de 2009

REDES NO CÉU




(Fotos de Sofia P. Coelho)
Há redes no céu que nos filtram o ar, o espaço de voar, cabos elétricos de atraso na velocidade do nosso "antecipar". Há varandas abertas ao virar da esquina onde se pode correr mais depressa para lá. E garrafas de cerveja que se oferecem como chave para as abrir.

Ornamenta #053


quinta-feira, 18 de junho de 2009

TERRA E LIBERDADE




LAND AND FREEDOM
Ken Loach
Reino Unido, 1995

Na história da Península Ibérica do século XX, a Guerra Civil Espanhola (1936 – 39) ocupa um lugar de destaque por várias razões. Em primeiro lugar por, numa guerra intestina se ter registado uma participação excessivamente numerosa de países estrangeiros, quer por iniciativa oficial, quer por iniciativa individualizada dos próprios cidadãos. Descrevendo o conflito como o “campo de manobras europeu”, Von Thoma, o comandante de uma unidade alemã de carros de combate que combateu pelo lado dos nacionalistas, essencializou a sua significação internacional (*).
Espanha foi durante três anos o laboratório europeu para a catástrofe seguinte, ou sela, a II Guerra Mundial. Homens e material foram utilizados, ao estilo de ensaio, numa medição de forças e de capacidade antes do conflito aberto à escala europeia e mundial. Hitler e Mussolini do lado rebelde franquista e Estaline do lado republicano, distribuíam-se no mosaico das forças litigantes. Por iniciativa pessoal de vários estrangeiros, o exército republicano viu-se também “invadido” por voluntários, sendo o mais esclarecedor exemplo dessa contribuição as Brigadas Internacionais. Nas trincheiras estiveram homens universais que mais tarde imortalizaram o conflito através de romances, reportagens, fotografias e filmes documentais. Orwell, Hemingway, Malraux, Robert Capa, dos Passos, H. G. Wells, Simone Weil, Joris Ivens, etc, formaram a elite intelectual e artística de uma geração que, mais tarde veio a marcar de forma brilhante o panorama criativo das suas actividades. Foi a última geração a participar numa guerra por ideais.
Tubo de ensaio para o conflito total que se aproximava e último reduto de idealistas numa guerra, eis a essência da Guerra Civil Espanhola. Um tema que, nunca tendo estado ausente da História Contemporânea, se inscreve no cinema por várias ocasiões, tornando o objecto de estudo histórico ainda mais relevante. Prémio “Félix” para o melhor filme europeu de 1995, LAND AND FREEDOM de Ken Loach leva-nos aos idos de 36 ao sabor do vasculhar de uma caixa de recordações repleta de fotografias, panfletos e recortes de jornal da época. Após a sua morte, a neta descobre uma parte esquecida da vida do avô David, um jovem idealista de Liverpool que se ofereceu aos vinte anos como voluntário para Espanha. Uma vez lá chegado, apesar de membro do Partido Comunista Britânico, David é colocado numa milícia do POUM ( Partido Obrero de Unificacion Marxista), de simpatias anarquistas e trotskystas, por uma questão de agrupamento dos elementos estrangeiros na mesma estrutura. Compostas essencialmente por operários, sindicalistas, trabalhadores administrativos, artistas e intelectuais, as milícias funcionavam em clima de tomadas de decisão em assembleia geral, sendo os seus comandantes nomeados por eleição. Nada convencional para a época, muito menos para qualquer exército digno desse nome. Mas as suas razões também pouco tinham de convencional. Entre vários espanhóis, David vai combater ao lado de um irlandês do IRA, um escocês, um americano e um francês.
Enquanto decorre o filme, é impossível esquecer Orwell, bem como cenas que atingem a analogia com algumas das mais belas páginas da sua “Homenagem à Catalunha”. Os piolhos nas trincheiras (que chegavam a incomodar mais que o próprio inimigo), as lutas de montanha para montanha, o espírito sonhador e indomável das milícias. Tal como o seu compatriota, Loach vai também à essência de uma das dimensões mais relevantes do conflito do lado republicano, aquela que poderá mesmo ter decidido o rumo final dos acontecimentos e o subsequente triunfo do general Franco. Estamos a falar das desavenças entre as organizações de esquerda, mais concretamente entre anarquistas e comunistas.
Em meados da década de 30, à semelhança de Portugal durante a I República, os anarquistas detinham a maior central sindical espanhola, a CNT. Um milhão e meio de homens e mulheres distribuída com particular incidência por Barcelona e pela maior parte das zonas rurais da Andaluzia. O Partido Comunista, na mesma altura, contava com dez mil associados, havendo cem mil inscritos na central sindical a ele afecta, a CGT (*). A sua hegemonia na sociedade espanhola esteve sempre muito mais perto da luta política de bastidores nos corredores do poder do que da aderência popular. Nos últimos tempos da guerra, na tentativa de reunir sobre si a direcção e o controle absolutos do exército republicano, o Partido Comunista lança a partir de Barcelona uma campanha de descrédito e desactivação das forças anarquistas, acabando por as neutralizar. A breve descrição deste significativo e decisivo episódio é um pouco do percurso de David que, já em Barcelona, acabará por renunciar às Brigadas Internacionais e rasgar o seu cartão de membro do PC britânico.
Enquanto que os falangistas tinham a ideia de endireitar Espanha com “uma arma e um missal”, os anarquistas acreditavam poder fazê-lo com “uma arma e uma enciclopédia” (*). A emancipação da mulher, a instituição do divórcio, a alfabetização das populações, a colectivização das terras, etc., eram algumas das ideias defendidas pelos anarquistas. Ideias em maior número do que a capacidade organizativa e uma vontade de transformar superior à simples luta política ditaram o destino destes últimos heróis românticos. O episódio da ocupação da Central telefónica de Barcelona em Abril de 37, tanto em TERRA E LIBERDADE como em “Homenagem” à Catalunha”, fica amplamente documentado como emblemático da última fase da guerra.
Propositadamente “arrastadas”, embora excelentemente esclarecedoras, são outras cenas do filme, como uma onde se discute a colectivização das terras num “pueblo”, e outra onde um pelotão das Brigadas Internacionais obriga a milícia a depor as armas e entregar-se. Com uma brilhante carreira em auditórios europeus, particularmente em Espanha, TERRA E LIBERDADE é uma das iniciativas que melhor comemorou o sexagésimo aniversário da Guerra Civil. Um lugar onde a utopia não morreu, embora lá tenha deixado enterradas uma boa parte das suas esperanças.

Artur Guilherme Carvalho

(*) Thomas, Hugh – A Guerra Civil Espanhola, Lisboa, Pensamento – Editores e Livreiros Lda. 1987

Artigo publicano na revista CINEMA, nº 25, Setembro 1996

Ornamenta #052


quarta-feira, 17 de junho de 2009

UM AMOR DE SEMPRE


(Foto de Sofia P. Coelho)
Serão talvez fantasmas que ocasionalmente resolvem visitar-me em forma de memórias. Não foi só a estúpida morte da Matilde que deixou um vazio enorme nas nossas vidas. Foi aquela sensação em forma de náusea do desperdício de tantas e tantas vidas das maneiras mais absurdas que podemos imaginar. Lembro-me que três putos saltaram do viaduto Duarte Pacheco numa noite de Verão, dos que já saíram com os pés para a frente daquele túnel desactivado na encosta do Casal Ventoso, de um acidente na marginal em que cinco pessoas foram parar ao mar e morreram todos, de um bacano que se enforcou porque a namorada o deixou, do outro que acabou com uma seringa pendurada no braço num parque de estacionamento, de dois tipos que morreram durante a recruta num Serviço Militar Obrigatório de treino para uma guerra que já tinha acabado … Tantos que nunca conheci e outros tantos com quem partilhei cigarros, música, sonhos, esperanças de dias melhores. Não, não os consigo esquecer, nem quero. Talvez porque eu poderia ter sido um deles e não fui. Talvez porque me culpo de ter sobrevivido, de ter ficado para trás para contar a história deles…
Há nisto tudo um gosto mórbido pela morte? É bem possível. Mas também há, no meu ponto de vista, um amor difícil de perceber. Há escolhas que não dependem da nossa vontade. Não escolhi apaixonar-me pela Matilde a um ponto de não o conseguir voltar a fazer por mais ninguém. Ficou cá a sua recordação enterrada na minha cabeça como uma parte integrante de mim próprio. Tal como a memória daqueles todos que se foram muito antes do tempo deles, porque sim.
O que é que me dói? Dói-me um país autista alegremente empenhado na disputa partidária, um povo sem memória que nem os mortos das guerras respeita, uma época em que os egos se masturbavam em memórias que nem lhes pertenciam, de uma crise económica violenta sem espaço para nada, dói-me o desperdício sistemático de talentos, qualidades, vidas que não foram suficientemente fortes para conseguir sobreviver a tudo isto. Dói-me o esquecimento, a ignorância ostentada como orgulho, a mediocridade premiada, a fantochada da vida que se exibe em imagens afastadas da realidade, a ganância sem limites… Sei lá o que é que me dói se a dor vive em mim como um braço ou um órgão desde que nasci.
Sei que a sua função é precisamente identificá-la, ajudar-me a viver com ela. Para uma
melhor qualidade de vida. Por isso estou aqui sem reservas, não porque de repente a Psicologia se me tornou a resposta, mas porque já não tenho mais lugar onde ir buscar força.
Por isso lhe peço: ajude-me como souber mas não me mate o amor que tenho pela Matilde e pelos outros. Ajude-me sem anular o meu Ser. Sem atrofiar as ideias que sempre tive sobre a Vida, a Liberdade e o Amor entre as pessoas. Ajude-me a um ponto em que os fantasmas me continuem a visitar sem que entre em desespero. Ajude-me a continuar vivo apesar de ter muito poucas razões para o fazer.
Ajude-me.

(extracto de “Sermão aos Matraquilhos”, fala de Tiago.

Ornamenta #051


terça-feira, 16 de junho de 2009

DOCUMENTARISMO HISTÓRICO


Vimos anteriormente como aos poucos as unidades de produção de filmes se vão afastando da vontade de registar os acontecimentos da sua época. O esforço de documentação das “actualidades” vai perdendo terreno em nome de uma formalidade importada, de um estilo copiado. No entanto o início da década de 20 apresenta-nos duas boas razões, ambas documentais, que contrariam esta tendência generalizada. Duas boas razões que estão directamente relacionadas com dois acontecimentos extremamente relevantes: a Grande Guerra (mais tarde I Guerra Mundial) e a travessia aérea do Atlântico Sul.
Em primeiro lugar a HOMENAGEM AO SOLDADO DESCONHECIDO (21), onde se filmaram as cerimónias de transladação do corpo anónimo de França para a Batalha com a presença do Marechal Joffré. A realização é de Rino Lupo.

O outro momento documental importante diz respeito à aventura bem sucedida de Gago Coutinho e Sacadura Cabral em 1922. A bordo do navio “Bagé”, Henrique Alegria e Artur Costa de Macedo seguiram viagem a 26 de Maio daquele ano com o novo avião Fairey 16 até aos penedos de S. Pedro e S. Paulo, que substituiria a anterior aeronave usada na travessia ( a que vemos na foto), entretanto inutilizada. Registando os principais acontecimentos desde essa altura até à chegada apoteótica ao Recife e posteriormente ao Rio de Janeiro, o filme intitulado O GLORIOSO RAID LISBOA – RIO DE JANEIRO obteve um estrondoso êxito. De tal forma que as imagens voltaram a ser aproveitadas vinte anos mais tarde por Fernando Fragoso e Raul Faria da Fonseca para o documentário TRAVESSIA AÉREA DO ATLÂNTICO SUL, e de novo em 1966 por Fernando Lopes para o CRUZEIRO DO SUL.
Para além das suas funções meramente recreativas, também em Portugal o cinema começava a ganhar o estatuto de fonte documental, um dos elementos essenciais para o desenho do processo histórico.

ARTUR

Cubic #06


segunda-feira, 15 de junho de 2009

UM PARADIGMA CHAMADO INVICTA


(Georges Pallu)
Fiel à tradição cinéfila a cidade do Porto continuava a marcar pontos. Alfredo Nunes de Matos, gerente do velho e prestigiado Jardim Passos Manuel, funda a Invicta Filme em 1910. Nos seus primeiros anos de existência os operadores Manuel Cardoso e Thomas Mary Rosell rodam milhares de metros de filmes tendo como objectivo principal o quotidiano daqueles tempos. Desde visitas presidenciais até à partida de soldados para a guerra, passando por romarias, manobras navais e acrobacias aéreas, a Invicta chegava a todo o lado, exportando as suas cópias para a Europa através das distribuidoras Gaumont e Pathé (representadas em Portugal por Nunes Matos).
Consolidada a popularidade e o rendimento da Invicta, Nunes de Matos decide dar um salto em frente. E assim, ligada ao banqueiro José Augusto Dias, ao empresário do Olímpia ( outro cinema vizinho do Passos Manuel) e director de produção Henrique Alegria, é fundada a Invicta Filme Lda. Em finais de 1917. Assimilando o pessoal e a maquinaria da Invicta antiga são contratados também vários técnicos franceses. Após a compra da Quinta da Prelada à Misericórdia do Porto está lançada a construção de um moderno estúdio de cinema.

(estúdios da Invicta Filmes Lda.)
Dos franceses contratados destaca-se o nome de Georges Pallu, elemento muito importante no cinema futuro como adiante veremos. Rodado em cinco dias, FREI BONIFÁCIO estreia a 4 de Outubro de 1918 no Porto no Olímpia, e em Lisboa no Salão Central e no Condes. Segue-se meses depois ROSA DO ADRO. Ambos têm a assinatura de Pallu na realização. Em Portugal os acontecimentos sucedem-se a uma velocidade vertiginosa. O consulado de Sidónio Pais, a insurreição monárquica no Porto e em Lisboa, agitação social pelo país fora. A Invicta no entanto, bem como a produção nacional em geral, afastam-se do quotidiano. Feitos sob o registo de film d’art os filmes portugueses, apesar de versarem obras e temas nacionais não trazem novidades temáticas. O produto, sendo convencional impunha-se no mercado.
A Invicta vai entrar na década de 20 em pleno de produção e carreira comercial contando com o apoio dos seus magníficos estúdios. Segue-se OS FIDALGOS DA CASA MOURISCA (21), uma produção orçada em cerca de 20 contos e com os exteriores filmados na Torre de Lanhelas no Alto Minho. Numa tentativa de encontrar temas portugueses, a Invicta e o Diário de Notícias comprometem-se a colaborar no sentido de publicar e posteriormente filmar o trabalho de autores nacionais. Deste casamento nascem dois títulos, ambos realizados por Georges Pallu. AMOR FATAL e BARBANEGRA em 1920.
Em 1921 tanto a Invicta como Pallu entram em carreira ascensional. AMOR DE PERDIÇÃO (primeira adaptação do clássico camiliano) e MULHERES DA BEIRA alcançam êxito considerável. A FRECHA DE MIRANDELA (baseado num conto de Abel Botelho) marca a estreia de um novo realizador, Rino Lupo.
Em 1922 a Invicta produz quatro filmes: O DESTINO e O PRIMO BASÍLIO de Georges Pallu, TINOCO EM BOLANDAS de António Pinheiro e TEMPESTADE DA VIDA de Augusto Lacerda. Este último inaugura uma tradição na temática do cinema português dos primeiros tempos ao filmar o mar e os pescadores, neste caso no contexto da Póvoa do Varzim.
Confrontada com uma série de dificuldades, os dias da Invicta entram em fase decadente a partir de 1924, tendo ainda produzido TRAGÉDIA DE AMOR de António Pinheiro e A TORMENTA, último filme da produtora e de Georges Pallu no nosso país. Se a nível criativo a decadência da qualidade e a imitação fracassada do figurino estrangeiro acabavam por fazer descer as audiências, o clima económico também não ajudava. Debaixo de uma crise nacional e internacional, com a desvalorização da moeda e as grandes dificuldades de distribuição a Invicta não consegue sobreviver. Com o desaparecimento da Invicta estava aberto o caminho a um dos maiores paradigmas de sempre do cinema português. Precisamente o da hostilidade do mercado combinado com a ausência de medidas proteccionistas pelo Estado em relação à concorrência estrangeira.
Em 1922 o escritor, jornalista e publicitário espanhol Raul de Caldevilla vem para Lisboa onde adquire a Quinta das Conchas ao Lumiar projectando a construção de um estúdio. O projecto não se chega a concretizar por venda posterior à Pátria Film. A Caldevilla Film durou dois filmes e dois anos. Foram eles OS FAROLEIROS e AS PUPILAS DO SENHOR REITOR, ambos realizados pelo francês Maurice Mariaud. Ambos baseados na obra de Júlio Dinis, o primeiro era rodado na Torre do Bugio. Embora tendo produzido vários documentários, a Caldevilla Film não iria sobreviver ao ano de 1923.
Seguem-se várias tentativas idênticas de implantar produtoras no mercado. Lusa Films, Fortuna Films, Enigma FIlms, Pátria Films, a uma média de dois a três trabalhos por produtora. Esta vaga de iniciativas isoladas não favorecia o nascimento de uma cinematografia nacional. A utilização de modelos estrangeiros, embora adaptando preferencialmente textos clássicos da Literatura portuguesa não era suficiente para cativar um público regular, mais preocupado com a carteira do que com o divertimento. Restava um património considerável de cinema documental, curiosamente o mais popular nos espectadores da época. O alheamento da República, mergulhada em convulsão permanente, também não ajudava nada. Indiferente à nova arte que emergia, a democracia liberal iria fracassar onde em poucos anos a ditadura triunfaria. Consciente do fenómeno Cinema e da sua utilização eficaz na propaganda, o Estado Novo viria a desenvolver e instituir a sétima arte como elemento privilegiado nos novos meios de comunicação.

ARTUR

terça-feira, 9 de junho de 2009

A MÚSICA QUE TOCA


Foto de Sofia P. Coelho
Volto a ouvir aquela música pela milionésima vez. Imóvel de sentido, emocionante de estímulo, ela continua pelo vácuo a deixar o seu som sem que nada a faça envelhecer. Olho para ela com um copo na mão e o tempo desfila perante a minha memória. Em quantos locais, em que situações. Ela. Sempre ela, aquela música que toca sempre da mesma maneira e não envelhece. Os dois, reis por uma noite, um casal de jovens que se apaixonaram naquele momento. Carros de porta aberta à neblina húmida do Tejo com dois amigos lá dentro a ouvir. A neblina de um charro a escapar-se levando-nos a caminho das estrelas. Simplesmente a ouvir, por baixo da respiração metálica da ponte com um ou dois casais de namorados a 50 metros, indiferentes a nós, à noite e ao mundo.
Tudo tão simples como um ritmo, uma melodia eléctrica libertada em euforia criativa. A música e a paz, o amor, a fraternidade das almas. Um som que permanece um som mas que cresce com o nosso tempo. O significado de um poema nas entranhas da existência. Não nos rendemos. Não entregamos os pontos à mediocridade da existência. Não quer dizer que não tivéssemos perdido em quase todas as frentes. Uma geração sem vocação de Poder, um grupo etário que soube sempre e apenas o que não queria. Que disse tantas vezes “não” que se esqueceu do que queria afirmar enquanto ideia concreta. Mais um desperdício de existência entre negativas e liberdades aceleradas, exageradas até à vertigem. Cá estamos, os que estão e fizeram o favor de não partir antes do tempo. Cá estamos da mesma maneira que sempre estivemos. Deslocados, vazios e carregados de VIDA. Para quê? porquê? Porque, por alguma razão que conhecemos, que sempre soubemos existir, isto não é nem deve ser assim. Uma razão tão incrustada nos confins do instinto que a racionalidade nunca conseguiu tornar legível.
Amanhã outra geração se levantará. Falhará como nós falhámos, mas vai tentar fazer alguma coisa que acabará por ser a sua marca. Meter-nos-á em lares onde andaremos a fugir de enfermeiras diligentes para fumar um charro às escondidas na casa de banho. É esta a nossa sina: ninguém nos compreender. Pais, filhos, enfermeiras do lar. Uma vida inteira a fugir porque não vale a pena explicar. O que foi bom para nós não é necessariamente bom para os outros. Os outros… nós… o mundo.
A canção toca como sempre tocou acompanhando as horas vazias, os dilemas da existência que continuarão cá depois de morrermos. Talvez nessa altura se consiga perceber alguma coisa. Quando já não interessar para nada perceber seja o que for. Enche-me o copo, irmão. Deixa que a noite sossegue a intranquilidade dos fantasmas. Numa parte remota do universo, nós fomos qualquer coisa. Dê lá por onde der, as marcas ficaram, a Liberdade foi desenhada numa parede e os filhos da puta vão continuar a perceber que há quem não pense nem seja igual a eles. Fomos qualquer coisa como aquela música que nunca envelhece, apenas ganha mais sentido de cada vez que é ouvida.

ARTUR

sexta-feira, 5 de junho de 2009

UM ARRANQUE ACIDENTADO


UM ARRANQUE ACIDENTADO
Integrado na vanguarda mundial, o cinema português dava os seus primeiros passos. A iniciativa de Rousby deixara as suas sementes com o Animatógrafo e, desta forma, Manuel Maria da Costa Veiga (foto de cima), associando-se ao capitalista Alexandre Mó, começa a exibir filmes em vários locais de Lisboa.
Em 1899 Costa Veiga adquire uma câmara em segunda mão, e anos mais tarde funda em Algés a primeira produtora portuguesa, a Portugal Filmes. Ao contrário de Paz dos Reis, que tem na actividade laboral o seu objecto fílmico, Veiga vai a Cascais até à praia filmar el-rei D. Carlos, primeiro a banhos e depois em visita ao Sporting Club local. A Portugal Filmes trabalhou intensamente nos primeiros anos do séc. XX sendo a maioria dos seus trabalhos de carácter documental. Desde a reportagem (visita do Kaiser Guilherme II a Portugal, idem sobre os reis de Espanha) até ao registo das terras portuguesas, também conhecido como “filmes panorâmicos”. Os filmes de Costa Veiga têm por cenário o período conturbado do final da monarquia portuguesa. Sabe-se que esteve na Rotunda captando os acontecimentos da Revolução do 5 de Outubro de 1910. A Portugal Filmes continuou a trabalhar até 1918.
Em termos de iniciativas de produção, na primeira década do séc. XX há a registar três momentos fundamentais: - A Portugália Filme ligada a João Freire Correia, D. Nuno Almada e Manuel Cardoso em 1909; a Empresa Cinematográfica Ideal fundada por Júlio Costa no mesmo ano; a Luzitânia Film, gerida por Celestino Soares, Reis Santos e tendo Júlio Potes como financiador, no ano de 1918.
João Freire Correia, como Paz dos Reis, era fotógrafo e possuía uma câmara de filmar adquirida em França em segunda mão. Solicitado pelo empresário Luís Ruas para incluir um quadro filmado na revista popular “ Ó da Guarda”, realizou “O Rapto de Uma Actriz”, o primeiro filme português de enredo. Um dos actores envolvidos nesse projecto, Nascimento Fernandes, acabaria por fundar em 1919, em parceria com Amélia Ferreira, uma produtora que produziria três filmes cómicos nos estúdios de Barcelona.
E é a mesma Portugália Filme que após a rodagem de vários documentários ( onde se destaca TERRAMOTO DE BENAVENTE, reportagem dos efeitos devastadores de um tremor de terra na localidade referida), embarca na segunda tentativa de filme de enredo.

Com uma primeira fase abortada em 1909, em 1911 OS CRIMES DE DIOGO ALVES (foto acima) estreiam em Abril no Salão Trindade em Lisboa. A escolha recaiu sobre a vida de um grande criminoso que nos idos do século anterior havia despertado o terror e a imaginação da população de Lisboa, atirando as suas vítimas do Aqueduto das Águas Livres abaixo. Os seus crimes ficaram conhecidos através de brochuras populares da série “Os Criminosos Célebres”. Esta é oficialmente apontada como a primeira obra de ficção rodada entre nós. O filme surpreendia pelo realismo e crueldade das cenas, bem como pelo equilíbrio entre exteriores e interiores, acentuando o carácter popular das imagens. O êxito de bilheteira fez esgotar todas as oito sessões programadas.
A empresa Cinematográfica Ideal arranca com o objectivo de explorar o mercado português através de produção própria. Enquanto vai construindo um estúdio junto ao Castelo de S. Jorge, o operador Júlio Santos filma numerosas reportagens. A produtora produz uma comédia sem grande relevo (CHANCELER ATRAIÇOADO) e um êxito estreado no Sala Central (RAINHA DEPOIS DE MORTA), acerca da lenda de Inês de Castro. No ano de implantação da República (1910), o cinema e o público mantinham a preferência pela tradição. Tudo termina tragicamente para Cinematográfica Ideal no Verão de 1911 com um incêndio no morro do castelo.
Os anos seguintes vêm surgir uma série de iniciativas isoladas. È o caso de PRATAS CONQUISTADOR (1917) de Emídio Ribeiro Pratas, uma réplica dos filmes de Charlie Chaplin; os primeiros filmes dos Serviços Cartográficos do Exército em torno da realidade das trincheiras e do Corpo Expedicionário Português na I Guerra Mundial; uma primeira experiência do “filme científico” realizada pelo Professor Costa Lobo acerca de um eclipse solar ocorrido em 1912; vários trabalhos documentais; um dos primeiros trabalhos de técnica publicitária (UM CHÁ NAS NUVENS), filmado com os funâmbulos Puertollanos na Torre dos Clérigos no Porto.
Os finais da década são também o alvorecer das ideias futuristas, do Modernismo e da adoração pela máquina. A geração de “Orfeu”, pela intervenção de António Ferro e da sua conferência “As Grandes Trágicas do Silêncio”, sente a emergência da nova estética no respirar do cinema. Trata-se agora de levar a tela branca para longe da barraca de feira, do exclusivo sentir popular, e dar-lhe um novo conteúdo. Estes precursores das novas correntes estéticas entram no cinema pela porta da Luzitânea Filme, destacando-se Luís Reis Santos, futuro grande crítico de artes e letras, e Leitão de Barros, que nesta empresa realiza os seus dois primeiros filmes MALMEQUER e MAL DE ESPANHA, ambos no ano de 1918. Ainda ligado à mesma produtora vai aparecer Cotinelli Telmo, o futuro realizador da CANÇÃO DE LISBOA. Os dois primeiros filmes de Leitão de Barros redundam em fiasco tanto de público como de crítica. Empenhada em apresentar um sentimento de acordo com um nacionalismo tradicional, a Luzitânea Filme. Assim os títulos TOURADA NO CAMPO PEQUENO e VIAGEM AO NORTE DO PRESIDENTE SIDÓNIO PAIS constituem dois marcos documentais dessas intenções. Factores inesperados como a grande epidemia pneumónica (que leva a fechar as salas de espectáculos como o Coliseu, arrendado pela firma para exploração) fecham a sobrevivência da Luzitânea. Nem a construção de um estúdio moderno nem a constituição de uma excelente equipa de técnicos encabeçada pelo operador-chefe Costa Veiga e composta por nomes como Cotinelli Telmo, Stuart Carvalhais e Artur Costa Macedo chegou para manter de pé o projecto. O sonho de uma produção regular no cinema português ficava mais uma vez adiado.
ARTUR

Ornamenta #047


quinta-feira, 4 de junho de 2009

BOIADAS


Num colégio interno de população exclusivamente masculina, onde convivem centenas de rapazes dos 10 aos 18 anos, tudo o que lá se passa é intenso, todas as emoções são inevitavelmente fortes e todas as gargalhadas acabam à beira do colapso. Das pedras do chão até à abóbada celeste, nada tem sinal fraco. Naquela casa bicentenária os claustros serviam de sala de visitas para as grandes cerimónias. Para nós, os habitantes da povoação, eram como que o largo central da aldeia, local onde tudo se passava a quase todo o tempo. Cada pedra daquele claustro tem mais do que uma história para contar. O claustro (ou claustros) estava nas manhãs antes das aulas; na festa do 1º de Dezembro em que o solstício de Inverno se brindava com uma encenação da Restauração ( a Mocada) finalizado com uma batalha entre os dois anos mais antigos; nas tardes de Primavera onde se decoravam a cruz com o capote e a barretina para sinalizar o fim do ano; no contacto com o mundo exterior na medida em que a porta principal do Colégio se encontra no lado Este da mesma estrutura. Nos claustros eram praticados também uma série de rituais oficiais desde o momento pelos antigos alunos mortos em combate como a investidura dos mais novos em cavaleiros.

Mas o que hoje me apetece contar-vos é uma história diferente. Uma história que fala de solidão e de gargalhadas, de solidariedade e sobrevivência, de coisa nenhuma e de tudo isto ao mesmo tempo. A “Boiada” consistia numa instituição recreativa não oficial. Os claustros eram um dos cenários preferidos para o fazer. Tratando-se de um mundo extremamente rigoroso, disciplinado e hierarquizado, os alunos ocupavam a base da pirâmide do poder naquela casa. Levávamos de Professores, de oficiais, corríamos à frente de vigilantes, continuávamos a levar dos mais velhos… Enfim, uma alegria. A nós, anónimas vítimas de toda esta pesada estrutura, restava-nos inventar uma forma de retaliar feita à medida das nossas possibilidades. Deste modo inventámos a “Boiada” de claustro. Consistia esta em nos distribuirmos estratégica e camufladamente pelos intervalos das arcadas atrás dos pilares. No andar de cima ou no de baixo conforme o plano imediato de fuga. Entrada a vítima começava o chavascal. Flores da mais fina retórica decoravam-se das mais elaboradas ofensas de que nos conseguíamos lembrar. Seguia-se o plano de fuga. Cada um para seu canto, sala de aula, casa de banho, Biblioteca, de preferência rápido e sem demoras. A vítima, na maior parte dos casos fazia que não era nada com ele e assim ficava respeitado o espaço da válvula de escape dos jovens alunos. O esquema funcionava de tal forma bem, que em pouco tempo, da escolha selectiva dos piores resolvemos democratizar a “Boiada”. Ficávamos ali horas à espera, cada um atrás do seu pilar até chegar alguém. Indiscriminadamente, viesse quem viesse, o brinde estava reservado para o primeiro que entrasse na área dos claustros. Professor, oficial, vigilante ou aluno mais velho. Os mais batidos e atentos evitavam o átrio nu e caminhavam apenas por baixo das arcadas. Assim a banda sonora era mais suave visto que o alvo tinha espaços mortos, passagens onde não se conseguia focar.
Numa tarde de terceiro período, pouco depois do fim das aulas, resolvemos ficar uns quantos para trás e esperar por um alvo atrasado. Até ao jantar havia tempo. Lá fomos esconder-nos até que alguém o identificou. “Vem aí o Nónes”.
O “Nónes” era um simpático oficial lateiro já com alguma idade que não fazia mal a uma mosca. Mas…era ele que havia, era ele que tinha de ser sacrificado. Ia começar a “Boiada” quando de repente, tudo ficou suspenso. Um gás soltou-se de forma ruidosa fazendo eco naquelas paredes. Olhámos uns para os outros. Que altura mais estúpida para executar a gracinha. “Foste tu? - Não! -Foste tu ?- Não !- Foste tu? – Não ! Outra descarga voltou a ecoar. Era o “Nónes” que, julgando estar sozinho nos claustros dava largas à imaginação gaseificada. E de cada vez que descarregava rematava com um “Oh diabo!”. Uma nuvem de hilaridade contida caiu sobre nós. A “Boiada” terminou antes de começar. Corremos para a casa de banho para podermos rir à vontade.
Ali, com aquela pequena história compreendemos uma série de lições, daquelas que só a Vida nos ensina. Primeiro, que quanto mais se reprime alguém, mais a solidariedade e a camaradagem se desenvolvem em laços extremamente fortes. Quem se julga só, é apenas porque ainda não percebeu que o está tanto como estão os outros. Nascemos e morremos sozinhos. Não há drama nenhum nisso. E, em certos dias, estamo-nos completamente a cagar…

ARTUR

Ornamenta #046