terça-feira, 31 de março de 2009
PARIS E O CINEMA II
SUBWAY
Luc Besson
França (85)
Abrindo com uma cena de perseguição com passagem pela “periférique” (Circular da cidade de Paris), o filme introduz-nos em alta velocidade à intriga central. Fred (Christophe Lambert) rouba uns documentos comprometedores a um grupo de gangsters que o tentam apanhar. A fuga leva-o a refugiar-se no Metro de Paris, um autêntico universo paralelo, onde conhece vários tipos que por ali habitam em exclusivo. A ideia de formar uma banda com vista a gravar um CD mais adiante ganha corpo e Fred trata de fazer o recrutamento entre músicos que vagueiam perdidos pelos corredores. Enquanto os bandidos o perseguem acaba por se envolver com Heléne (Isabelle Adjani), nada mais nada menos que a mulher do chefe do grupo. Há ainda um núcleo policial que passa o tempo a vigiar e a perseguir os habitantes do Metro, nomeadamente o patinador carteirista, sem grande sucesso.
Realizado no meio da década de 80, SUBWAY funciona como metáfora de muitas faces, sendo talvez a mais evidente aquela que refere a chamada “Geração Miterrand” , fora do sonho socialista da época. Por outro lado, a rejeição da cultura institucionalizada através da afirmação de uma outra mais popular, é evidente na proposta musical do filme. O facto de a maior parte da acção decorrer nos corredores do metropolitano parisiense dá-nos o pulsar da narrativa, no sentido em que nos apresenta outros lados da vida arrumada e limpa que se poderá observar à superfície. As linhas entre bandidos e diletantes, policias e ladrões, marginais e instituídos acabam por se entrecruzar chegando muitas vezes a território cinzento onde não se conseguem distinguir. Convergem, convivem e atravessam a vida como as carruagens que transportam cidadãos de um lado para o outro. Porque o Paraíso não existe em lado nenhum, os seres acabam por se distinguir na forma obcecada como o procuram construir. Mas seja como for, acabarão sempre por perder. O final do filme é a essência dessa contradição. Quando finalmente a banda consegue uma actuação num dos átrios de uma estação, e no horizonte se começa a desenhar a possibilidade de uma gravação em estúdio, Fred é alvejado pelos bandidos. Tudo fica em suspenso imediatamente antes do filme acabar. Fred sobreviverá ou não? E se sobreviver qual será o destino dele com Heléne?
Por tudo o que se disse anteriormente, SUBWAY é uma razão suficientemente forte para se passarem cerca de 2 horas em frente de um écran. Resta acrescentar que Christophe Lambert recebeu o César para o melhor actor de 86 pelo seu desempenho neste filme.
ARTUR
sexta-feira, 27 de março de 2009
PARIS E O CINEMA – PARTE I
Há cidades que se transformam naturalmente num espaço ideal para filmar. Nova Iorque, Londres, Barcelona, Roma, Paris, todas se enamoram da câmara num bailado sedutor através do qual se apresentam ao resto do mundo. Hoje escolhi Paris para vos apresentar três filmes das décadas de 80 e 90, exemplos paradigmáticos de como se transforma uma realidade urbana num objecto de arte
DIVA
Jean-Jacques Beinix
França, 1981
Não tendo sido este o primeiro filme que me fez apaixonar de forma irremediável pelo Cinema, foi sem dúvida um dos que mais me marcou em toda a minha formação. A primeira lição que aprendi com o filme de estreia de Beinix foi que era possível filmar um poema. Uma realidade que a minha mente de adolescente nunca teria conseguido sequer vislumbrar nem nas noites de maior percepção imaginativa. Porque é disso que se trata. Um poema de cores, formas e sons que nos agarra desde o primeiro instante e nos atira para dentro de um universo único de sonho e emoção.
Em DIVA, a história é o que menos interessa na medida em que toda a nossa atenção é sempre pouca para nos apercebermos da beleza das imagens e do objecto filmado. Um jovem carteiro de Paris encontra-se de repente a ser perseguido por uns orientais mafiosos quando estes se apercebem que gravou clandestinamente uma bobine magnética num recital de uma famosa cantora lírica americana que se recusa a gravar discos. Tudo que se passa a seguir é uma série de peripécias que, excepcionalmente, enquadram a beleza das imagens ou a explosão dos sentidos. Desde a alucinante perseguição no Metro, à explosão do modelo Citroen anos 30 branco novinho em folha, há ainda um farol idílico e um “puzzle” gigantesco que só se consegue decifrar já mesmo no fim. Sobre tudo isto uma área da ópera “La Wally” de Catalani, interpretada pela famosa soprano americana Whilhemenia Fernandez.
O compasso entre a beleza do canto lírico e a rusticidade dos mafiosos só se interrompe com a inocência do jovem carteiro, bem como dos seus companheiros de aventura onde se inclui um alucinado ex-combatente da Argélia.
Os anos 80 estavam a começar no rescaldo do “punk” e a necessidade de inventar o mundo era a prioridade de quem caia de cabeça no início da vida. Uma prioridade que depressa se desvaneceu para se transformar num existir com mais ou menos sabedoria, com mais ou menos sorte. Como quem se atira para uma tarde de chuva a pensar que inventou a impermeabilidade.
DIVA é a muitos níveis um poema sobre o vazio das nossas vidas. Mas é também um convite à imaginação e à obrigação de construir algo belo num espaço onde apenas estamos de passagem.
ARTUR
DIVA
Jean-Jacques Beinix
França, 1981
Não tendo sido este o primeiro filme que me fez apaixonar de forma irremediável pelo Cinema, foi sem dúvida um dos que mais me marcou em toda a minha formação. A primeira lição que aprendi com o filme de estreia de Beinix foi que era possível filmar um poema. Uma realidade que a minha mente de adolescente nunca teria conseguido sequer vislumbrar nem nas noites de maior percepção imaginativa. Porque é disso que se trata. Um poema de cores, formas e sons que nos agarra desde o primeiro instante e nos atira para dentro de um universo único de sonho e emoção.
Em DIVA, a história é o que menos interessa na medida em que toda a nossa atenção é sempre pouca para nos apercebermos da beleza das imagens e do objecto filmado. Um jovem carteiro de Paris encontra-se de repente a ser perseguido por uns orientais mafiosos quando estes se apercebem que gravou clandestinamente uma bobine magnética num recital de uma famosa cantora lírica americana que se recusa a gravar discos. Tudo que se passa a seguir é uma série de peripécias que, excepcionalmente, enquadram a beleza das imagens ou a explosão dos sentidos. Desde a alucinante perseguição no Metro, à explosão do modelo Citroen anos 30 branco novinho em folha, há ainda um farol idílico e um “puzzle” gigantesco que só se consegue decifrar já mesmo no fim. Sobre tudo isto uma área da ópera “La Wally” de Catalani, interpretada pela famosa soprano americana Whilhemenia Fernandez.
O compasso entre a beleza do canto lírico e a rusticidade dos mafiosos só se interrompe com a inocência do jovem carteiro, bem como dos seus companheiros de aventura onde se inclui um alucinado ex-combatente da Argélia.
Os anos 80 estavam a começar no rescaldo do “punk” e a necessidade de inventar o mundo era a prioridade de quem caia de cabeça no início da vida. Uma prioridade que depressa se desvaneceu para se transformar num existir com mais ou menos sabedoria, com mais ou menos sorte. Como quem se atira para uma tarde de chuva a pensar que inventou a impermeabilidade.
DIVA é a muitos níveis um poema sobre o vazio das nossas vidas. Mas é também um convite à imaginação e à obrigação de construir algo belo num espaço onde apenas estamos de passagem.
ARTUR
sexta-feira, 20 de março de 2009
IRMÃ
A primeira vez que reparei em ti a sério ainda usavas fraldas embora já andasses. Lembro-me que foi numa tarde de Verão na cozinha da avó, e de um pacote de bolachas Maria. Estava a comer quando te vi entrar. Olhei para ti. – Queres uma? – Sabendo perfeitamente que dispunhas ainda de um vocabulário limitado que não chegava às dez palavras. Por isso fiquei surpreendido quando te vi abanar a cabeça em forma de “sim”. Dei-te a bolacha e fiquei a ver-te olhar para ela em pose de investigação. Depois da primeira dentada reparei que as tuas ancas se movimentavam para a frente a para trás fazendo abanar o tronco, como se de uma dança se tratasse. A bolacha desapareceu num instante, tal como a dança. Ficaste a olhar para mim que me refazia ainda do breve espectáculo de expressão corporal. Estendi-te outra. A mesma coisa. Observação, mastigação e dança. Nessa tarde demos cabo de um pacote inteiro para grande galhofa minha de ver aquele pequenino ser a agir como um boneco a pilhas que, em vez de ser accionado com uma moeda, funcionava a bolachas.
O tempo continuou os nossos dias, a maior parte das vezes convertido num campo de batalha onde cada um contabilizava as suas vitórias e derrotas. Tu desafiavas o mais velho e eu impunha a disciplina e a ordem na hierarquia da nossa geração. O Paulo veio depois e, ou por ser demasiado calmo, ou demasiado pequeno, nunca figurou nas nossas disputas territoriais. Quando chegava vinha normalmente acompanhado da Mãe, de chucha na boca e olhar muito atento, tudo factores de um mundo diferente, um mundo que não era o nosso. Lembro-me daquela ideia maluca que tivemos de o pôr a pedir numa esquina quando ele tinha três anos. Estendia a mão durante 15 minutos e havia pastilhas para o resto da semana. Não fora uma vizinha intrometida ter passado e reconhecido o Paulo e tudo tinha corrido na perfeição. Em vez disso as pastilhas ficaram um pouco além da despesa inicialmente prevista. Uma corrida à frente do Pai a caminho do infinito e a assinatura da mão dele nos nossos rabos.
No dia em que fui para a tropa não quis despedidas (toda a gente sabe que não gosto de despedidas) por isso fiquei surpreendido quando te vi a correr pela estação fora à minha procura. Deste-me um beijo e uma K7 dos Whitesnake com um sorriso. “Para não perderes o juízo e não te esqueceres quem és!” Lembras-te? Nunca mais me esqueci desse momento, nem das inúmeras estaladas que dávamos um ao outro em ambiente de festa. A nossa “guerra” era tão forte que até os nossos pais desistiram de intervir ou sequer de a tentar compreender. Foi o melhor que fizeram.
Anos mais tarde dizias-me que estavas muito triste. Ia haver um concerto dos Siouxie and The Banshees no dia seguinte e tu não podias ir. Não sei se porque o Pai te proibiu ou se tinhas um exame importante que te obrigava a estudar. Sei que, nunca tendo sido grande apreciador da banda, resolvi ir lá com um gravador pequeno no bolso. A gravação deve ter ficado uma lástima, mas tu não te queixaste.
Hoje há alturas em que me distraio com o tempo em que vivo e me apetece ir à dispensa da avó e tirar um pacote de bolachas na esperança de te ver entrar atrás de mim com uma fralda. Depois imagino os teus dentes a cerrarem-se na minha direcção com uma mão rápida a caminho da minha cara e corro. Corro até me doerem os pulmões pelo espaço que ocupámos em rituais de irmãos, indiferente ao cansaço da memória ou à tristeza do tempo que não volta. Corro para não me perder recordando os que amo, únicos testemunhos de mim próprio. O tempo não pára nem consegue matar as memórias. Serve-me um pouco de recordação com duas pedras de gelo e deixa-me flutuar, passear à beira do mar ao fim da tarde. Quem me dera que a vida que vivemos tivesse sido a vida que tivemos porque não a troco por nenhuma outra.
A que propósito vem tudo isto? Apeteceu-me lembrar-te o quanto te amo e, à falta de bolachas, brindo-te com palavras. Porque te amo…irmã.
ARTUR
O tempo continuou os nossos dias, a maior parte das vezes convertido num campo de batalha onde cada um contabilizava as suas vitórias e derrotas. Tu desafiavas o mais velho e eu impunha a disciplina e a ordem na hierarquia da nossa geração. O Paulo veio depois e, ou por ser demasiado calmo, ou demasiado pequeno, nunca figurou nas nossas disputas territoriais. Quando chegava vinha normalmente acompanhado da Mãe, de chucha na boca e olhar muito atento, tudo factores de um mundo diferente, um mundo que não era o nosso. Lembro-me daquela ideia maluca que tivemos de o pôr a pedir numa esquina quando ele tinha três anos. Estendia a mão durante 15 minutos e havia pastilhas para o resto da semana. Não fora uma vizinha intrometida ter passado e reconhecido o Paulo e tudo tinha corrido na perfeição. Em vez disso as pastilhas ficaram um pouco além da despesa inicialmente prevista. Uma corrida à frente do Pai a caminho do infinito e a assinatura da mão dele nos nossos rabos.
No dia em que fui para a tropa não quis despedidas (toda a gente sabe que não gosto de despedidas) por isso fiquei surpreendido quando te vi a correr pela estação fora à minha procura. Deste-me um beijo e uma K7 dos Whitesnake com um sorriso. “Para não perderes o juízo e não te esqueceres quem és!” Lembras-te? Nunca mais me esqueci desse momento, nem das inúmeras estaladas que dávamos um ao outro em ambiente de festa. A nossa “guerra” era tão forte que até os nossos pais desistiram de intervir ou sequer de a tentar compreender. Foi o melhor que fizeram.
Anos mais tarde dizias-me que estavas muito triste. Ia haver um concerto dos Siouxie and The Banshees no dia seguinte e tu não podias ir. Não sei se porque o Pai te proibiu ou se tinhas um exame importante que te obrigava a estudar. Sei que, nunca tendo sido grande apreciador da banda, resolvi ir lá com um gravador pequeno no bolso. A gravação deve ter ficado uma lástima, mas tu não te queixaste.
Hoje há alturas em que me distraio com o tempo em que vivo e me apetece ir à dispensa da avó e tirar um pacote de bolachas na esperança de te ver entrar atrás de mim com uma fralda. Depois imagino os teus dentes a cerrarem-se na minha direcção com uma mão rápida a caminho da minha cara e corro. Corro até me doerem os pulmões pelo espaço que ocupámos em rituais de irmãos, indiferente ao cansaço da memória ou à tristeza do tempo que não volta. Corro para não me perder recordando os que amo, únicos testemunhos de mim próprio. O tempo não pára nem consegue matar as memórias. Serve-me um pouco de recordação com duas pedras de gelo e deixa-me flutuar, passear à beira do mar ao fim da tarde. Quem me dera que a vida que vivemos tivesse sido a vida que tivemos porque não a troco por nenhuma outra.
A que propósito vem tudo isto? Apeteceu-me lembrar-te o quanto te amo e, à falta de bolachas, brindo-te com palavras. Porque te amo…irmã.
ARTUR
terça-feira, 17 de março de 2009
When you walk through a storm
hold your head up high
And don't be afraid of the dark.
At the end of a storm is a golden sky
And the sweet silver song of a lark.
Walk on through the wind,
Walk on through the rain,
Tho' your dreams be tossed and blown.
Walk on, walk on with hope in your heart
And you'll never walk alone,
You'll never, ever walk alone.
Walk on, walk on with hope in your heart
And you'll never walk alone,
You'll never, ever walk alone.
No espaço de 5 dias foram 4 no R. Madrid e mais 4 em Old Trafford no Manchester United. Fónix este clube é lindo
RUMBLE FISH REVISITED
Uma das muitas razões que me levaram a apaixonar pelo cinema prende-se com a tendência natural com que este se exprime quando escreve aquilo que muitos entendem por Escrita Universal. Em traços gerais, a Escrita Universal é a capacidade que qualquer tipo de linguagem de comunicação consegue alcançar quando se expande muito para lá das fronteiras de uma cultura específica e nos transmite uma narrativa, um relato ou uma história com que a Humanidade em geral se pode identificar. É para esta galeria que aspiraram chegar artistas de todos os tempos e de todas as artes.
No caso do que hoje vos gostaria de contar vou falar de RUMBLE FISH (83), uma das muitas obras-primas de Francis Ford Coppola. Trata-se de um filme em torno da juventude, do crescimento e afirmação e do vazio. Para além de uma banda sonora de eleição (dirigida por Stewart Copeland, o baterista dos Police), conta com um elenco de luxo entre actores veteranos e estreantes: Matt Dillon, Mickey Rourke, Dennis Hopper, Diane Lane, Vincent Spano, Nicholas Cage, Diana Scarwid, Christopher Penn e Tom Waits. O filme deambula entre a memória de uma geração mais velha ( a do “Motorcycle Boy”) e a afirmação de outra recém-chegada às ruas de uma cidade sem nome. As drogas e a guerra entre “gangs” havia dizimado a primeira deixando um espaço vazio e impossível de preencher pelos mais novos. É nesta ambiguidade de identificação e vazio que Rusty tenta (sem êxito) viver à altura da lenda do irmão, o rapaz da motorizada. E se o primeiro nunca consegue viver ao nível da lenda, o segundo ao regressar, não consegue gerir a sua própria existência. Fica como que meio isolado, autista de si mesmo e da realidade circundante. A comunicação entre eles é difícil e os equívocos acumulam-se até à constatação do vazio.
No meu bairro passaram-se situações semelhantes. Os nossos irmãos ou primos mais velhos foram marcados pelo fim da guerra colonial e pelos anos que se seguiram ao 25 de Abril. Quando chegou a nossa vez de deambular pelas ruas já os confrontos políticos e os ácidos tinham cozido a cabeça a muita gente. Ouviam-se os Pink Floyd e os Génesis mas por osmose familiar. Já não eram a nossa cena.. se é que alguma vez alguma cena foi nossa. Havia dois casos flagrantes acerca do que referi atrás. O Luisinho, que tinha ficado preso um ano em Marrocos e que só regressou porque o pai dele moveu céus e terra para o libertar, acabando mesmo por viajar para lá e trazê-lo de volta. O Luisinho que voltou, nunca mais foi o mesmo. Era uma sombra da alegria e da vivacidade de outros tempos. Trabalhou com o pai uns anos e, talvez nos idos de 80, acabou por se suicidar. O outro exemplo foi o do Fernando. O Fernando era um herói para os putos como nós. Foi o primeiro tipo a ter uma Kawasaky 750 no bairro. O seu rasto nas ruas era como o de um cometa ruidoso e fugitivo que nos deixava o coração a bater e a saliva a cair sozinha pela boca abaixo. A vida do Fernando era festas, gajas, drogas e porrada com pequenos intervalos para dormir. Andava com um grupo de motoqueiros enormes vestidos de cabedal até aos pés, sempre à espreita de uma desculpa para partir as trombas a alguém. Um dia numa festa o Fernando meteu um ácido estragado que lhe afectou o cérebro. Esteve ainda em coma no hospital uns tempos até que voltou a bairro. Não morreu mas nunca mais foi capaz de ser autónomo ou sequer de articular um discurso coerente. Por lá anda ainda hoje, não chateia ninguém, não faz nada. Vive com os pais e considera-se embaixador de uma distante civilização de extraterrestres que ocasionalmente visitam o nosso planeta.
Nós, miudagem ao pé destas lendas vivas, cedo quisemos também tropeçar pelas escadas do crescimento. Com algumas lições aprendidas (quase ninguém tomava ácidos) embora com muito pouco tempo para lhes dar a atenção devida. A política tinha entrado nos seus eixos rotineiros obrigando os seguidores de cada tendência a exibir um comportamento e uma disciplina seguidista, coisa que, tirando as devidas e minoritárias excepções, pouco nos interessava. Havia uma nova cultura musical, jogos de bola às tantas da noite no largo da igreja, as nossas festas, a nossa droga e… inevitavelmente, tinha que haver porrada. Era uma necessidade tão evidente como o turbilhão hormonal que nos assaltava a toda a hora em sucessivas vagas não saciadas. No bairro formavam-se unidades de combate cujo critério de formação era baseado no café em que cada grupo se encontrava. Desta forma o bairro tinha tantos gangs como cafés disponíveis. É claro que muitas sessões de porradaria colectiva nem chegavam a acontecer de facto. Ou porque um gajo de um lado namorava com a irmã de outro gajo do outro, ou porque dois elementos de lados opostos se conheciam e tinham estudado juntos na mesma turma, ou porque no meio da preparação, os combates (invariavelmente no largo da igreja) eram dramaticamente interrompidos por milícias de dois ou três gajos do Casal Ventoso que nos caiam em cima e nos obrigavam a juntar forças para resistir ao massacre.
Uma tarde de Maio, um grupo de um dos cafés decidiu ir à procura de um tipo de outro bando, que costumava parar do outro lado do jardim. Havia umas contas para ajustar sobre não sei o quê que disse ou fez, as coisas nunca precisavam de grandes justificações quando se tratava de exercitar o “cabedal” em cima de alguém. Vai daí, arrancam dez “monos”, atravessam o jardim e entram de forma triunfante no outro café qual parada da vitória de legião romana em Roma no fim de uma campanha. O “Pencas” ia à frente. Àquela hora o café estava cheio de possíveis inimigos. Avós e netos, domésticas e um sem fim de malandragem. Perante aquela invasão que bloqueou a saída todos se calaram. O dono do café, que nos conhecia a todos desde miúdos, saiu de trás do balcão para se inteirar da situação. Altivo e com uma barra de ferro na mão, o “Pencas” disparou:
- Tá aí o “Carga d’Ossos”? – ao que o senhor Xavier respondeu negativamente. Sem mais demoras o “Pencas” fez um sinal com a cabeça para os outros. Três deles saíram então e dirigiram-se à cave do estabelecimento, onde funcionavam três mesas de matraquilhos. Conforme desceram, voltaram a subir. Viraram-se para o chefe da banda.
- Não tá ninguém lá em baixo. – o outro ficou pensativo por instantes sem saber bem o que fazer a seguir. O senhor Xavier, mantendo uma postura heróica ou de desprezo conforme o ângulo de visão, voltou a fazer-se ouvir.
- Já te disse que não está cá nenhum “Carga d’Ossos” por isso acho melhor que vocês se ponham a andar a não ser que queiram que eu chame a policia. – Para não perder a autoridade e como toda a população do café concentrasse a sua atenção nele, o “Pencas” teve que manter a atitude. Virou-se para o senhor Xavier.
- Não quero saber… Hoje há alguém que vai ter que ser aviado!!
The Motorcycle Boy Reigns….
sexta-feira, 6 de março de 2009
CAMPO DE OURIQUE – A ALDEIA MAIS BONITA DA CIDADE
“ A Rua Saraiva de Carvalho é muito comprida.
Parte dela é aqui ao voltar da esquina.
O princípio é perto do Rato, o fim
No Cemitério dos Prazeres. A Rua Coelho da Rocha
é perto do fim.”
Fernando Pessoa
Carta a Ofélia, 29- 4- 1920
Uma das muitas definições da cidade de Lisboa pode ser a de uma cidade imperial, composta por muitas aldeias. Fruto da sua acidentada geografia e das contingências da ocupação populacional, muitos dos bairros que hoje compõem a cidade tiveram o seu início em pequenos núcleos de moradores, conservando talvez por isso através do tempo, teimosos traços de identidade e distinção. Chamar a Campo de Ourique aldeia não é mais do que ressalvar de forma carinhosa as melhores características que definem um pequeno espaço urbano.
Juntamente com Campolide, Avenidas Novas, Castelo e Monte, Campo de Ourique insere-se no grupo dos bairros de cota mais elevada da cidade. O bairro, situado num planalto, é limitado por duas antigas ribeiras que corriam para o Tejo, formando os vales de Alcântara e de S. Bento. Na evolução do bairro há a considerar três fases históricas decisivas. Primeiro, na sequência do terramoto de 1755, a região passou a ter muita procura pelos habitantes da cidade. Não tendo sido muito afectada pelo sismo em virtude das suas características geológicas, a região conheceu no fim do séc. XVIII um primeiro movimento de ocupação e fixação. A segunda fase de ocupação e evolução urbana teve lugar um século mais tarde, acompanhando o crescimento populacional de Lisboa, em virtude do desenvolvimento económico após a Regeneração, sobretudo com Ressano Garcia. A ele se deve a construção do bairro de Campo de Ourique em 1879. A nova vaga de crescimento urbano, e a mais importante, ocorre em 1906, quando o bairro conhece um novo projecto de ampliação, consolidado no período da I República (1910-1926).
Por iniciativa do engenheiro Ressano Garcia, o bairro de Campo de Ourique começa a delinear a sua estrutura urbana no ano de 1880. Planeado como um rectângulo regular, abriu-se um eixo orientador constituído pela Rua Ferreira Borges, definindo-se as outras artérias a partir dele. Eram largas de 15 metros, formando quarteirões ortogonais. A testemunhar esta primeira fase das obras, permaneceu até hoje um conjunto de casas para operários construído em 1880 na Rua 4 de Infantaria (actual Pátio das Barracas). Três anos depois, a instalação da Empresa Cerâmica de Lisboa perto da Estrada dos Prazeres viu nascer as primeiras casas do bairro. A inauguração do Caminho-de-ferro de Alcântara a Sintra em Abril de 1887 contribuiu para uma ocupação das franjas do bairro, primórdios de outra aldeia mítica da cidade, o Casal Ventoso.
Em finais do séc. XIX Campo de Ourique tinha já uma animada vida associativa, participando activamente em todos os movimentos conspirativos para derrubar a monarquia. Este seu traço rebelde manter-se-ia inalterado ao longo da sua história. São conhecidas reuniões de Carbonários nas pedreiras de Campo de Ourique desde 1890. Outro facto importante para a história do movimento associativo no bairro foi a fundação da Sociedade Cooperativa A Padaria do Povo em 1903, para fornecimento regular de pão aos seus habitantes e aos vizinhos de Campolide. A esta fundação esteve também ligada a criação da Universidade Popular. E aqui deparamos com mais uma característica de aldeia unida: a da solidariedade entre os seus habitantes. Até 1911 o bairro estendia-se até à Rua Tomás da Anunciação.
É sobejamente conhecida a intervenção de Campo de Ourique nos acontecimentos da implantação da República em 1910, documentada nos apontamentos de Machado Santos em A Revolução Portuguesa. Nesse documento é ressalvado o importante apoio dos revolucionários civis de Campo de Ourique, enquadrados pela Carbonária. As tradições republicanas e reivindicativas do bairro consolidaram-se durante a I República, tendo as suas ruas servido de palco para greves, protestos, manifestações, movimentação de tropas revoltosas, etc. Deste período, a História guardou a chamada “Revolta da Batata” em 1914, contra a carestia de vida, o que acabou por constituir o primeiro desafio do movimento operário ao governo de Afonso Costa.
O bairro continuou a crescer com belos edifícios da «Belle Époque», a par com outros erigidos à pressa sob a designação de «gaioleiros». Os anos 20 conhecem também as primeiras manchas de pobreza em lugares como o Casal do Evaristo, Casal Ventoso, Monte Prado, Terramotos e Sete Moinhos. Em 1923 Raul Brandão deixou-nos uma impressionante reportagem sobre este tema: “… a maioria é de velhos trapeiros, de mulheres e de crianças que, ao cair da noite, com o saco às costas e o gancho na mão, vão à gandaia – isto é, procurar o lixo nos caixotes. Muitos nem gancho têm; é com as unhas que separam os papéis e os trapos que metem no saco.”
Dentro de um número considerável de artistas que procuraram estas paragens para fazerem delas o seu local de morada é inevitável falar de Fernando Pessoa que em 1920 veio para a Rua Coelho da Rocha, ali vivendo até à data da sua morte em 1935. Mas além do poeta mais lisboeta que se conhece, outros ali pararam, atraídos pelas qualidades do bairro. Escritores como Nuno Bragança, Luís de Sttau Monteiro, António José Saraiva, Fernando Assis Pacheco, e intelectuais como Bento de Jesus Caraça deram ao bairro a honra da sua presença em troca de viverem na aldeia mais simpática de Lisboa. Mas isso já é outra história…
ARTUR
quinta-feira, 5 de março de 2009
POEMA
Fomos já morte
antes de nascermos
silêncio vazio
de uma qualquer existência
E somos ainda
a morte protelada
antes de morrermos
Porque em tudo
somos sempre tudo
e sempre nada
Carlos Lopes
Este e outros poemas fantásticos como este podem ser lidos no blog I Blog Your Pardon
antes de nascermos
silêncio vazio
de uma qualquer existência
E somos ainda
a morte protelada
antes de morrermos
Porque em tudo
somos sempre tudo
e sempre nada
Carlos Lopes
Este e outros poemas fantásticos como este podem ser lidos no blog I Blog Your Pardon
terça-feira, 3 de março de 2009
ESCRITO NO VENTO
As palavras que nunca te disse foram aquelas de que não me consegui lembrar. Os momentos que registei, as memórias agradáveis, as outras, foram-se arrumando silenciosamente como livros em estante de biblioteca. Se agora houvesse espaço para me arrepender, tenho a certeza de que não o faria. Se agora houvesse caminho de retorno e emenda, virava-lhe as costas. Tudo é como é, e tudo faz um sentido qualquer nas nossas vidas mesmo que não lhe consigamos chegar a ler sentido nenhum. E a pairar sobre esse sentido há outro, uma razão de ser maior que nunca se deixa revelar, uma ideia, um conceito qualquer que nos manipula em determinada direcção, um “porquê” que respira. Cá em baixo sabemos apenas que nos inscreveram num ciclo, do nascer até à morte, concêntrico noutros círculos de existência onde o tempo corre, corre sempre para lado nenhum. Na pujança da idade adulta chovem ilusões sobre a consciência. Somos os reis do mundo e tudo se explica na palma da mão. Mas não… é só ilusão. Ilusão suficiente para repetir a vida, recriar círculos concêntricos com outros ciclos debaixo de um sentido superior a que não fomos apresentados. Fica o amor, as emoções que nos sopram insistência em seguir o rumo dos acontecimentos com vontade e determinação. Fica a raiva e o nervo vibrante de dor pela injustiça ou pela maldade, pelos filmes onde nos calhou o papel de vítima. E para quê? Porquê? Para onde vamos se é de movimento que se trata? O que conhecemos nós que nos sirva para ser hoje mais do que fomos ontem? E agora? Para onde..?
ARTUR
(Fotografias de Sofia P. Coelho)
segunda-feira, 2 de março de 2009
DOS LIVROS
“ As pessoas normais trazem filhos a mundo; nós, os romancistas, trazemos livros. Estamos condenados a perder a vida neles, embora quase nunca no-lo agradeçam. Estamos condenados a morrer nas suas páginas e às vezes até a deixar que eles acabem por nos tirar a vida. “
Carlos Ruiz Záfon in “O Jogo do Anjo”
Carlos Ruiz Záfon in “O Jogo do Anjo”
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