terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

NUNO BRAGANÇA – OBRA COMPLETA



Para todos aqueles menos familiarizados com o trabalho de Nuno Bragança, a D.Quixote acaba de publicar a sua Obra Completa na passagem dos 80 anos do seu nascimento. Já aqui referenciado anteriormente, o autor foi uma das referências mais importantes do panorama literário nacional da segunda metade do século XX, deixando às gerações mais novas um riquíssimo património narrativo baseado tanto numa experiência vivencial intensa como na descrição de uma geração que atravessa as décadas de 60 e 70 na juventude.
Uma das particularidades interessantes desta compilação consiste na publicação de um texto inédito, A Morte da Perdiz, escrito para um folhetim radiofónico.
Em traços gerais, o fascínio dos trabalhos de Nuno Bragança estão directamente ligados à sua personalidade e formação. Aristocrata de berço e inquieto por natureza, a sua escrita poderá ser caracterizada por um cristianismo revolucionário onde os valores se cruzam na esquina do humanismo. Entre 1968 e 1972 trabalhou em Paris na representação de Portugal junto da OCDE, enquanto colaborava com uma rede clandestina de apoio aos refugiados políticos vindos de Portugal. Antes disso especializou-se em problemas do emprego e foi fundador do Serviço Nacional de Emprego. Fez parte do movimento chamado “catolicismo progressista” juntamente com João Bénard da Costa, Alçada Batista, Pedro Tamen, entre outros. Mais tarde aproximou-se do grupo clandestino Brigadas Revolucionárias. Privou com personalidades importantes da oposição como Mário Soares, Salgado Zenha ou Manuel Alegre.
Já depois do 25 de Abril seria assessor do Ministro do trabalho Mário Murteira. Até 85, data da sua morte, fez parte do GIS, Grupo de Intervenção Socialista, movimento de reflexão constituído por dissidentes do Partido Socialista. Colaborou com a UEDS (União de Esquerda para a Democracia e Socialismo), publicou artigos no Jornal de Letras e apoiou Maria de Lurdes Pintassilgo à Presidência da República.
No cinema destaca-se a fundação do Cine-Clube Centro Cultural de Cinema, instituição a que presidiu entre 1956 e 1959. Assinou o argumento e diálogos do filme VERDES ANOS de Paulo Rocha (63) e em 1970 foi também co-autor do documentário intitulado NACIONALIDADE PORTUGUÊS com Gerard Castello Lopes, Fernando Lopes e Augusto Cabrita.
Paralelamente a esta edição de obra completa refira-se também a saída recente de um documentário intitulado U OMÃI QE DAVA PULUS por João Pinto Nogueira, que acompanha os passos do escritor ao longo do tempo.
A obra de Nuno Bragança, para além de responsável pela introdução do nouveau roman no panorama literário português, reveste-se de uma lucidez acutilante de observação e acompanhamento do comportamento humano no contexto da realidade nacional numa época específica. Mais do que fazer um julgamento ou estabelecer as fronteiras do maniqueísmo, a Nuno Bragança interessa-lhe sobretudo, a uma velocidade estonteante, marcar, referir e registar fragmentos da realidade. Nesses fragmentos encontra aqui e ali o seu espaço identitário não se fixando em nenhum. A sua escrita, repleta de registos humorísticos hilariantes, faz a combinação da tragédia com a comédia, realçando dessa forma a intensidade da vida e existência humanas. (Re) ler Nuno Bragança é encontrar um espaço de identidade e reflexão no que de melhor a nossa cultura tem em termos não só estéticos como literários.
Artur Guilherme Carvalho

Obra Completa : A Noite e o Riso

Directa

Square Tostoi

Estação

Do Fim do Mundo

A Morte da Perdiz

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

THE TOWER OF SONG

Well my friends are gone and my hair is grey
I ache in the places where I used to play
And Im crazy for love but Im not coming on
Im just paying my rent every day
Oh in the tower of song

I said to hank williams: how lonely does it get?
Hank williams hasnt answered yet
But I hear him coughing all night long
A hundred floors above me
In the tower of song

I was born like this, I had no choice
I was born with the gift of a golden voice
And twenty-seven angels from the great beyond
They tied me to this table right here
In the tower of song

So you can stick your little pins in that voodoo doll
Im very sorry, baby, doesnt look like me at all
Im standing by the window where the light is strong
Ah they dont let a woman kill you
Not in the tower of song

Now you can say that Ive grown bitter but of this you may be sure
The rich have got their channels in the bedrooms of the poor
And theres a mighty judgement coming, but I may be wrong
You see, you hear these funny voices
In the tower of song

I see you standing on the other side
I dont know how the river got so wide
I loved you baby, way back when
And all the bridges are burning that we might have crossed
But I feel so close to everything that we lost
Well never have to lose it again

Now I bid you farewell, I dont know when Ill be back
There moving us tomorrow to that tower down the track
But youll be hearing from me baby, long after Im gone
Ill be speaking to you sweetly
From a window in the tower of song
Yeah my friends are gone and my hair is grey
I ache in the places where I used to play
And Im crazy for love but Im not coming on
Im just paying my rent every day
Oh in the tower of song

Leonard Cohen

sábado, 14 de fevereiro de 2009

TEQUILLA SUNRISE


Com o regresso do Sol e um fim-de-semana para descontraír, uma banda que aprendi a gostar desde o berço...

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ENTRE DIÁLOGOS, LINGUAGENS E ADAPTAÇÕES




Adaptar uma obra de arte para outro tipo de linguagem que não aquele para o qual foi inicialmente programada traz consigo uma série de riscos e outro tanto de especulação e crítica que nos pode deixar horas a falar sem chegar a grandes, ou pelo menos, absolutas, conclusões. Adaptar situações históricas, reconstituir o passado, recontar factos, traz consigo também uma série de implicações que devem ser cuidadosamente estudadas e debatidas, pela simples razão de que no caso das adaptações nem tudo deve ser permitido Ou, por outras palavras, a liberdade criativa nas adaptações carece de um nexo mínimo de verdade e honestidade intelectual sem os quais a obra de arte perderá definitivamente o seu estatuto para se transformar noutra coisa qualquer.
A primeira característica de uma “adaptação”de qualquer coisa (outra narrativa, uma biografia, um acontecimento histórico) é a da credibilidade. Credibilidade em dois sentidos: a) no do domínio de um padrão técnico de linguagem na execução; b) no domínio do conhecimento do objecto de adaptação.
As adaptações cinematográficas de livros acabam em regra por transformar o objecto filmado em algo diferente, fruto de uma série de condicionantes e restrições que compõem a mudança de um tipo de linguagem para outro. Mas essa diferença não pode nem deve servir de desculpa para transformar uma narrativa noutra coisa qualquer. Tem de respeitar uma certa unidade de pensamento e de sentido próprio, o espírito da obra. Caso contrário já não é uma adaptação mas sim outra narrativa, outro conteúdo. Dou a título de exemplo na cinematografia nacional três versões do romance “Amor de Perdição” de Camilo de Castelo Branco. Em todas (versão muda de Georges Pallu (1921): 1ª versão sonora de António Lopes Ribeiro (1943) e mais recentemente Manoel de Oliveira (1978) ), apesar das características que as distinguem, o romance, a unidade estrutural da narrativa é respeitada. Distingue-as por exemplo o facto de serem rodadas em épocas diferentes, factor determinante que influencia desde a abordagem técnica até à direcção de actores, passando pelo modo de arrumar os vários episódios.
Esta é outra característica importante de uma adaptação: a época em que é executada influencia directamente o processo, seja por razões técnicas seja por razões ideológicas. E neste caso, muitas vezes é a narrativa original que sai a ganhar, como foi o caso em análise.
EQUADOR
No caso da super produção da TVI do romance “Equador” de Miguel de Sousa Tavares, o extraordinário esforço de reconstituição de uma época não consegue disfarçar uma série de falhas, voluntárias ou não, que, quanto a mim, se afastam do espírito do romance para edificar outra coisa diferente. Logo em primeiro lugar vem o facto do acrescento de personagens e ambientes que não se encontram no original. Não adiantando nem atrasando nada ao original, servem apenas para encher o ambiente da época. Por outro lado, talvez para justificar o investimento das paisagens da Índia, a extensa e demorada atenção dada ao casal de ingleses que se vão encontrar em S.Tomé com Bernardo e precipitar o desenlace da trama não faz muito sentido. A sua referência introdutória contava-se em 1 terço do tempo em vez de se mastigar e estender até à náusea os elefantes, os palácios e os figurantes indianos. A situação do casal falar entre si em português é também de um péssimo mau gosto, só ultrapassado pelo sotaque forçado de David como se tivesse as mandíbulas ocupadas com rolos de algodão. A narrativa televisiva escorrega da grande produção para a telenovela chineleira com uma facilidade arrepiante. Se acrescentarmos a inclusão de cenas e de entrada de personagens que nada adiantam ou acrescentam, deixando pontas soltas por acabar, associado à ênfase excessiva, e até mesmo imbecilizada das libidos de todos, o trabalho apresentado pela TVI nada acrescenta ou engrandece uma das mais bem conseguidas narrativas de reconstituição históricas dos últimos anos da Literatura Portuguesa.

SALAZAR E AS VALQUÍRIAS

No capítulo das reconstituições históricas gostaria de analisar dois exemplares da ordem do dia que devem ser referidos. Estou a falar de OPERAÇÃO VALQUÍRIA e de A VIDA PRIVADA DE SALAZAR. Sendo o primeiro uma adaptação cinematográfica com um volume de meios quase inesgotável, o tratamento dado a um dos episódios mais marcantes da vida interna do Reich já quase no fim da Segunda Guerra Mundial peca por centrar num único elemento (o Coronel Von Stauffenberg interpretado por Tom Cruise) uma conspiração elaborada por um grupo importante de altas patentes do exército alemão empenhadas na execução de Adolf Hitler. Tratando-se de um movimento composto por vários oficiais, correspondente a uma boa parte do povo alemão, a figura de Tom Cruise não convence, arrastando o filme para os terrenos da banalidade hollywoodyana do heroizinho engomado e bonitinho que nem de perto nem de longe consegue vender a imagem de uma veterano de guerra, um guerreiro de vida inteira, um patriota, etc. A título de comparação gostaria de referir o filme OS ÚLTIMOS DIAS DE HITLER de Oliver Hirschbiegel bem como a suprema criação de Bruno Ganz no papel do ditador. O facto histórico, embora muito bem enquadrado na reconstituição dos cenários, deixa muito a desejar no tratamento e explicação das ideias, dos motivos e do enquadramento político. Aliás esta tem sido a sina do cinema americano. Uma qualidade excelente na reconstituição da sua História e um desastre quase constante na dos outros.
E por fim, que dizer de A VIDA PRIVADA DE SALAZAR de Jorge Queiroga sem caír na banalidade das afirmações gratuitas? Que a criação é livre, tal como a adaptação ou invenção de determinados factos? Que o austero ditador que manteve o país debaixo da sua autoridade durante décadas afinal era tão humano como os outros? Que o respeitável e abnegado beirão se portava na intimidade como um verdadeiro garanhão?
A liberdade permite-nos dizer e fazer quase tudo o que nos apetece…até inventar o que não foi verdade. Mas que interesse poderá ter uma longa narrativa erótica sobre a vida íntima de um dirigente político sem contextualização histórica nenhuma? Que interesse terá um trabalho especulativo e simplificador de uma figura demasiado decisiva e relevante na história de um país se a câmara for colocada debaixo dos lençóis e aí for deixada o tempo todo?
A adaptação ou a reconstituição do facto histórico, não sendo um trabalho académico acaba por carecer de credibilidade para se poder tornar uma obra de arte. E se entendermos a arte enquanto objecto de comunicação e conhecimento o mínimo que podemos fazer quando adaptamos uma realidade histórica é ter rigor no conteúdo. Por alguma razão não se vêm filmes da Antiguidade em que os figurantes exibam relógio de pulso. E se vemos não se trata definitivamente de nenhuma referência de qualidade.
A “facilidade” ou a “subjectividade” simplificadora com se pretendem defender certas obras (de cinema ou de televisão) com objectivos pouco esclarecidos ou justificações absurdas (razões de bilheteira, massificação de conhecimento) não disfarçam a mediocridade e a incompetência em que consistem nos seus resultados. A História ou a narrativa literária adulterada, mal interpretada ou tendenciosamente exibida será propaganda, lixo audiovisual, e, em última análise…mentira. Mas não será nunca Arte…
ARTUR

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Histórias Sem Tom Nem Som

Saiu, na Minguante, um e-book da minha autoria. Aqui fica o link. Espero que gostem.

(Passar as páginas com o rato...)

NEW YORK -BLACK & WHITE





Fotos de Sofia P.Coelho

Passos apressados, multidões inquietas em movimento, a correria para todas as direcções e para lado nenhum. As cores, os dias cinzentos, sem elas, bagatelas escondidas numa banca improvisada de rua. O movimento, as pessoas atropeladas de atraso que correm para o destino que desaparece nas entranhas da neblina do Hudson. Uma mulher, um olhar breve de convite ou de saudação, Salinger e Kerouack bêbados numa esquina agarrados a dois sacos de papel pardo que escondem garrafas. Profetas de cruzamento arengando o fim dos tempos sobre as cabeças anónimas que não param, apenas registam à passagem este ou aquele detalhe. Harold Loyd pendurado num relógio de arranha-céus, Penn Station de gangsters e policias incorruptíveis, carrinhos de bébé que caem na escadaria, escadas rolantes que se movem ao jeito de "Carlitos Way". Cheiro de baunilha e pretzles sobre os taxis amarelos, colunas de fumo saem das tampas de esgoto, os chineses vendem tudo o que há para vender no seu bairro. De Niro escapa-se por uma viela a caminho de Mott Street carregado de ópio. Ama-se e não se ama nesta Babilónia dos tempos modernos, ou capital da Humanidade, conforme as ópticas de observação. Odeia-se e não se tem tempo para odiar, o dinheiro circula à velocidade do som. Central Park para descontraír, a neve, o lago gelado e os esquilos. Digo adeus na direcção da casa do Paul Auster. Hei-de voltar, de dar a volta ao parque e parar na porta do Dakota Building a tempo de me lembrar do Lennon, ou de parar num bar de jazz à 5a Feira e ouvir a banda do Woody Allen. Café WHA para relembrar, reviver, café expresso, Budweiser...Tudo acontece ao mesmo tempo nesta cidade que nunca dorme.......
ARTUR

Garatujas #20

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

SERMÃO AOS MATRAQUILHOS (Desabafos)


Agora que o meu pai morreu já pouco sentido faz uma casa de madeira pintada com umas tiras amarelas à entrada das Azenhas do mar. As caminhadas falésia abaixo, canas de pesca, cesto de verga com as sandes, balde pequeno com a terra que envolvia minhocas bailarinas, balde grande vazio para trazer os peixes, panamá na cabeça, às vezes o tio Armando aos palavrões sem conseguir acertar o isco no ponto de interrogação metálico do anzol, tudo ficou em suspenso num tempo como plantas dentro de um bolha de ar perdida num lugar qualquer da minha memória, de alguma maneira com vida à espera de morrer comigo. Os fins de semana cinzentos até Domingo à hora da saída salpicados de chuva e nuvens de água em pó que o mar assobiava nas rochas. Vou vender esta merda. O grande animador desta festa de madeira para as férias e para os fins de semana já não está cá e eu... eu... breve ideia dele nesta terra, interrogação nómada de vida inteira, pensamento efémero de companhia de circo sem poiso fixo, sem sentido, sem mulher, gás de cloaca anónima que nem no seu ruído se faz ouvir porque eu e a minha mãe somos como um turista japonês em Roma a tentar saber a direcção do Vaticano com outro turista espanhol a pensar que se trata de um italiano. Ela não quer saber. Com três netos e uma artrose que faz o favor de a incomodar sempre que o tempo muda e um companheiro a quem visita todos os meses instalado num jardim de pedra, tem mais que fazer do que preocupar-se com uma casa de madeira com umas faixas amarelas pintadas no exterior de que só o meu pai gostava. Não tenho nada contra isso... nem a favor. Uma vida partilhada por dois seres acaba por se transformar no mesmo ser (talvez), uma existência de décadas construída por duas vidas devia dar direito a alimentar os sonhos do outro mesmo depois da morte. Talvez. Não sei dizer ao certo, nunca vivi com nenhuma mulher, nunca tive filhos, nunca partilhei sonhos com ninguém. Aprendi a amar entidades colectivas auxiliado pela expressão das armas. Jurei a defesa e a protecção do território, da Constituição e do povo português mesmo com o sacrifício da própria vida. Como é que um guerreiro dos tempos modernos pode sequer tentar perceber o que vai na cabeça da mãe dele..? Ao fim de quarenta anos de vida, só sei que ela se preocupa comigo e passa meses sem me ver. Criou três filhos da melhor maneira que sabia, cumprindo o seu papel de forma empenhada, responsável e transparente. Acho que, embora detestando o caminho da estrada de Sintra e a casa de madeira que ficava à entrada das Azenhas do mar, sempre soube esconder o seu desprezo aristocrático por um buraco onde poderiam viver os pescadores da zona só para não contaminar a alegria e o entusiasmo do companheiro, o seu sacrifício, o seu esforço para que houvesse aquele espaço de férias, um lugar de descontracção fora da cidade. Um funcionário público honesto e cumpridor que poupava todos os tostões por breves momentos de paz no tempo em que ter férias era um luxo, no tempo em que éramos todos pobres e este país fazia concorrência desleal à Albânia em todas as listas do subdesenvolvimento europeu. Todos pobres, sim. Mesmo os cagalhões dos meus avós, com apelidos sonantes de famílias antigas e pedra de armas a encimar o arco de granito da entrada da quinta onde viviam no Norte. Também eles eram pobres apesar das criadas, apesar dos jantares com os maiorais do Estado Novo, apesar do desprezo social com que faziam questão de receber o meu pai. Comiam o que se plantava na quinta e as vindimas decidiam em cada ano se podiam pagar a prestação ao Crédito Agrícola ou passar o Inverno seguinte com o tecto a pingar sobre as suas cabeças. Não sei se venda esta merda, pai. Tal como muitas foram as vezes na minha vida que quanto mais certezas tinha, mais depressa as deixava de ter. Um homem com o tronco desfeito, com meio corpo à vista na beira de uma estrada da Bósnia é como um camião que atropela todas as convicções. Um homem desesperado a tentar proteger o filho pequeno dos tiros de um franco-atirador, que lhe grita desesperadamente para não disparar numa rua de Serajevo, põe em causa séculos de civismo e bom senso europeu, deita por terra todas as esperanças de um futuro civilizado onde todos tenham direito ao seu espaço de respeito e dignidade. Morreram os dois, pai. Pai e filho. La Pietá versão masculina, pátria, num único gemido surdo. Miguel Angelo revisitado numa rua de uma cidade da Europa onde a Humanidade continua a esculpir com detalhe e perfeição as curvas e os desníveis da sua própria barbaridade. Desta vez sem nenhuma entidade exterior a quem atribuir o papel de culpado. Foi essa uma das melhores revelações deste século para muitas pessoas. O Céu e o Inferno nada têm a ver com o que nos acontece. O homem é o grande predador de si próprio, o único arquitecto dos cenários mais infernais que nos assolam por esse planeta fora. Deus e o diabo estão fora disto como espectadores espantados. E eu atravessava aquilo tudo sendo-me impossível ficar indiferente. Havia um pequeno lança-granadas na parte de trás do jipe. Apontei na direcção de onde vinham os tiros e rebentei com um vértice do prédio. Gostava de ter ouvido os gemidos daquele filho da puta. Gostava de o ter ouvido a guinchar como um porco só para aliviar o meu desespero por justiça. Voltei com um louvor, uma promoção a Major e o peso do mundo nas costas. Voltei a tempo de ainda te encontrar vivo no hospital, a tempo de te conseguir ainda contar uma anedota e dividir uma gargalhada na véspera da tua morte. E não tive tempo de te contar isto tudo, de voltar contigo a ver um desafio de futebol . Não tive tempo de ouvir a tua opinião.
Amanhã vou pôr a casa a vender num anúncio do jornal. Hoje, no entanto, comprei uma garrafa de whisky para a emborcar sentado na varanda a ver o mar, a tentar-me lembrar que nesta casa houve um tempo para se ser feliz. Para me lembrar que este espaço silencioso já foi preenchido por gritos e cantorias de crianças alegres, do tilintar de copos cheios de limonada ao fim de uma tarde de Verão, dos latidos de um cão simpático que caía redondo após voltas e voltas sobre si próprio na vã tentativa de morder a cauda. Se nesse tempo fui feliz, não sei dizer. A felicidade é uma palavra muito forte para este planeta. Queima se nos aproximarmos demasiado dela. Mas eu vivi aqui bons tempos contigo, a mãe e os meus irmãos. Por isso aqui me emborracho enquanto o Sol se vai espraiando no horizonte, à tua saúde e à das memórias que vão morrer comigo.

Garatujas #19

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

AUSTRÁLIA

Se não se for mordido ou perfurado até à morte de alguma maneira inesperada,
talvez se acabe trincado por tubarões ou crocodilos,
ou irremediavelmente arrastado para o mar alto por correntes irresistíveis,
ou a cambalear até uma morte infeliz no forno do continente interior.
É um sítio duro."

Bill Bryson in "Na terra dos Cangurus"





Fotos de Sofia P. Coelho

Robotnic