quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O ABSURDO E A FELICIDADE

1. Albert Camus concebe, desde a adolescência, uma obra. Nem mais nem menos. Sem cessar, com uma tenacidade que a sua biografia atesta, desce ao fundo dos seus ciclos em tríptico : um romance, um ensaio, uma peça de teatro, escapando velozmente às armadilhas do nihilismo e do cinismo, rompendo com o absurdo e passando à revolta – cada vez menos à revolução. Chegado aos trinta anos, visa um ciclo da felicidade e da serenidade. É sobre essa dualidade, ou sobre essa dupla faceta do seu pensamento, que me proponho reflectir.
2. Dando-se conta do absurdo da condição humana numa obra que comporta as três dimensões – romanesca, filosófica e teatral – Camus empreende a tarefa de compreender o sentimento de estranheza que nasce do “divórcio entre o homem e a sua vida, entre o actor e o décor”, escreve em “O Mito de Sísifo, Ensaio Sobre o Absurdo”, publicado em 1942. A tomada de consciência do não-sentido da vida é para ele, pelos menos de início, a constatação de um fracasso : o desejo de clareza do homem bate de frente contra a irracionalidade do mundo. O seu encontro não faz sentido, é absurdo. Mas, segundo Camus, essa lucidez pode tornar-se o motor da liberdade que acompanha a necessidade de lutar pela felicidade. Como opera esta alquimia que torna compatíveis o absurdo e a felicidade ?
3. Em “Noces”, quatro ensaios poéticos em prosa publicados em 1939, Camus fornece uma primeira resposta. O primeiro, intitulado “Noces à Tipasa”, celebra o amor que assume os tons do mar e do sol, esse mar que o autor conheceu na Argélia natal: entrar em comunhão com a natureza equivale a ultrapassar a ausência de resposta do mundo. Vale a pena revisitar esse excerto de texto, profundamente luminoso e esclarecedor:
 “Dans un sens, c’est bien ma vie que je joue ici, une vie à gout de Pierre chaude, pleine de soupirs de la mer et des cigales qui commencent à chanter maintenant. La brise est fraîche et le ciel bleu. J’aime cette vie avec abandon et veux en parler avec liberté: elle me donne l’orgueil de ma condition d’homme. Pourtant, on me l’a souvent dit : il n’y a pás de quoi être fier. Si, il y a de quoi: ce soleil, cette mer, mon coeur bondissant de jeunesse, mon corps au goût de sel et l’immense décor òu la tendresse et la gloire se recnontrent dans le jaune et le bleu. C’est à conquérir cela qu’il me faut appliquer ma force et mês ressources”.
 Sob condição de abandonar a esperança vã de um outro mundo, a recusa do suicídio é uma outra resposta que é dada, mais uma vez, em “O Mito de Sísifo”, no qual o problema inicial consiste em “julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida”. Com efeito, o absurdo poderia conduzir a uma motivação para o abandono da vida: todos nós pensámos nisso algum dia, escreve Camus. Mas é preciso não ceder ao desejo de anular a consciência, o que consistiria em redobrar o absurdo. O importante é conferir peso à vida pela acção “aqui e agora”, sem procurar a salvação algures, como a fé religiosa incita a fazer. Não nos podemos esquivar da morte, projectando a vida eterna, nem da vida, através de um divertimento no sentido que Pascal condenava no século XVII, ou seja, recorrendo a um desvio ou a uma recusa da ideia da nossa finitude. È a lucidez assumida que bane o suicídio e a esperança vã, e permite dizer sim à vida definitivamente. Reconhecer que a condição humana é sem esperança e sem amanhã convida o homem a viver plenamente a sua liberdade e a escolher a felicidade. Este caminho é balizado pelo nosso comprometimento físico, carnal, com o mundo, no qual o nosso corpo tem sempre um estádio de avanço sobre o espírito (“Habituamo-nos a viver antes de adquirirmos o hábito de pensar”). Aceitar a necessidade do absurdo, é avançar na espessura do mundo, indo colher a alegria lá, onde ela se encontra.
 4. Camus cita Nietzsche a fim de ilustrar esta “moral de grandes ares” que descreve aquilo que merece ser vivido: o francês partilha com o filósofo alemão a sua hostilidade para com os grandes conceitos que devem conferir sentido à vida. Em vez de reflectir sobre Deus ou sobre as grandes abstracções conceptuais, Camus convida a falar sobre a vida, a bater-se por ela, num sentido altruísta, como precisam as teses de “O Homem Revoltado”, publicado em 1951. Matar inocentes, afirma, é um crime que desnatura a revolta. Se o absurdo do mundo não é um tema novo – Franz Kafka já o tinha cruamente retratado em inúmeros textos – jamais tinha sido encarado, antes de Albert Camus, como uma fonte de gratificação pessoal. Este novo hedonismo, individual e despojado de todo o artificialismo ideológico, está longe de ser o maior contributo de Camus para a antropologia filosófica do século XX, sendo, no entanto, aquele que mais me comove, e que me parece mais pertinente, neste dia em que se comemoram os 100 anos do seu nascimento e neste tempo em que não há no mundo claridade suficiente, nem sol, nem mar, nem nada.

 Arnaldo Mesquita

1 comentário:

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