Escrever, dizer qualquer coisa sobre este filme, percute em mim uma velha e verdadeira proposição, segundo a qual "escrever sobre arte é o mesmo que dançar sobre arquitectura". Eu, que não sei dançar, arrisco esboçar os primeiros passos de uma coreografia que me coloca à beira do abismo. Comecemos.
Falo de "To The Wonder", realizado por Terrence Malick, o mais secreto, tímido e reservado dos cineastas, nada de espantar para aqueles que conhecem e amam os seus filmes, essas obras de arte cujo coração é habitado por espectros, sempre incertos, continuamente indeterminados. Alguém sabe de onde vem este cinema ? Para onde vai, que lugar habita ? A quem, a que se dá , quem poderá capturar a sua natureza ? Coloco as perguntas, sem me interessar pelas respostas. E a quem interessariam as respostas ? A obra de Malick é composta por vozes perdidas, sempre à procura de algo, de alguém, de alguma coisa, de nada.
No começo do filme vemos alguns planos captados por telemóvel, oferecendo às personagens um tempo suspenso mas também uma aspereza nova em Malick : a anamorfose, o ruído video, os erros cromáticos. Esta mudança no regime da imagem é uma novidade no seu cinema, tanto mais perturbadora quanto a sentimos como verdadeira e sincera. Na verdade é possível dançar sobre este filme. Aliás, Marina não faz outra coisa, desde que o realizador resolveu atirar pela borda fora o excesso de bagagem, tudo o que é supérfluo : diálogos, exposição, regras clássicas do enquadramento, montagem, etc, etc.
O que é um amor, o que é o amor ? Que sinais me envias que eu leio como sinais do amor ? Que signos nos oferece o mundo ? Na obra de Malick a linguagem sempre foi objecto de um tratamento muito cuidadoso e sempre ressoou com um timbre muito particular; aqui força ainda mais além esse radicalismo, começando o filme em francês, continuando em inglês, polvilhando-o de espanhol e italiano, cantando-o em russo. Esta última língua não é uma coincidência: Malick poderia ser Hipolite Terentiev interrogando o Príncipe Michkine: "Que beleza salvará o mundo ?". A beleza de Marina ? Uma espécie de Natalia Filipovna menos dura mas igualmente partilhada. No fim de contas o filme adopta de maneira quase literal a ideia de um amor partido em dois. De um lado, um sentimento virado para a bondade, a doçura, a atenção ao outro incorporado na personagem de Jane, calma e serena entre os bisontes; do outro, um amor-paixão, cruel e despedaçado como a personagem Marina. Entre essas duas mulheres, um Neil reduzido a algumas palavras, forçado ao silêncio pela montagem do filme que o não deixa exprimir-se em palavras, frases, diálogos. A ausência de palavras não significa o silêncio ou o mutismo no cinema de Malick, revestindo-se de outra natureza: distancia a personagem Neil daquilo mesmo que ele é : uma sequência equívoca mostra a tradução do diálogo em linguagem gestual por uma intérprete, a surda-muda mexe as mãos, a intérprete fala, o padre escuta: todos presentes no plano, indicando que tudo é movimento,palavra e flutuação. É nessa perspectiva que deve ser compreendida a atenção dada aos rostos: grandes planos sobre as rugas, as marcas, as cicatrizes que enchem o quadro : outros tantos signos da visão de corpos enfraquecidos, sozinhos, perdidos na imensidão de paisagens maravilhosas (o Mont Saint-Michel, campos povoados por bisontes, planícies, o sol escaldante, a maré que desce...).
A morte pesa sobre as imagens de "To The Wonder", ou melhor, o espectro da mortalidade: Marina está doente ? De que sofre ? Ou trata-se antes do filho morto de Jane ? No fim de contas, este filme transforma a pergunta presente em "A Árvore da Vida" (porquê a morte ?) na pergunta "o que é a morte ?"
Como todas as narrativas, "To The Wonder" cria suficientes aberturas que se tornam brechas, falhas que conferem ao filme uma ambiguidade radical, devida à natureza íntima do cinema de Malick : o final dos seus filmes nunca é o fim do mundo, ou de um mundo, mas a perplexidade, a abertura para outra coisa qualquer.
Afinal, esta pequena e humilde reflexão sobre o filme contém quase tantas interrogações como afirmações. Como se dançasse sobre areias movediças. Marina é menos uma dançarina do que uma mulher que não chega a dançar: o seu corpo, próximo da dança contemporânea, não exprime a ligeireza da dança como ideia de um corpo libertado da gravidade, da terra, tornado metáfora, pássaro, flor ou roda que gira em torno de si mesma. Ela sonha com a elevação, com tornar-se essa roda, mas raramente é aérea. Desliza em círculos, não conseguindo tornar-se o signo da criança nietzschiana. Como acontece com o padre, a alegria está-lhe vedada, e sem esse dom, as palavras, fossem elas as palavras dos Evangelhos, e os movimentos, fossem eles os de uma bailarina, não são nada. A esses movimentos, desordenados, sem consistência nem duração, carregados de negatividade, é preciso opor a verdadeira dança de Pocahontas, e as corridas de mãe e filhos em "A Árvore da Vida" : puras expressões do corpo que não estão separadas de si mesmas; plenitude do ser, eternidade do movimento, ou movimento da eternidade, que não é senão alegria. A alegria pretende a eternidade, não como qualquer coisa de que está separada, mas como o seu espaço de expressão. Ou melhor: a alegria não quer nada, não pretende nada : quem quer alguma coisa nunca está alegre, já que a vontade tem que ser pensada a partir da ideia de uma falta ou de uma ausência e a partir dessa negatividade. A alegria não quer a eternidade, ela é a eternidade, a experiência da eternidade.
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