terça-feira, 14 de maio de 2013

COMO ADQUIRIR UM SENTIDO APURADO DE ESTÉTICA CINEMATOGRÁFICA



1. Não se pode estar sempre a ver e a admirar os clássicos do cinema. Esses clássicos ficarão por aí, para sempre, até que a morte nos separe, ou até ao fim dos tempos, consoante o que acontecer primeiro. Procure-se, antes, as obras negligenciadas que revelam o mundo do cinema a uma luz brilhante e coruscante. Escrevi "mundo do cinema" e não "mundo". Se eu quiser ver o mundo revelado, vou por aí andando e tenho-o sempre à frente dos olhos. Por que raio alguém gastaria o seu tempo a procurar a realidade no écran, quando ela está sempre presente ?  Devemos ir ao cinema para nos esquecermos da realidade, o que quer ela seja. Ou melhor, exprima o que exprimir o termo "realidade" e as nebulosas construções fraseológicas, linguísticas e conceptuais que esse termo permite.
As pessoas costumam dizer que os filmes a preto e branco são mais realistas que os filmes a cores. Acontece que os filmes a preto e branco não são realistas de todo e, portanto, aqueles que assim se expressam querem realmente significar é que desejam fantasias disfarçadas de realismo, sugando-lhe a cor.

2. As pessoas sugam, ou chupam. Chupam bebidas com palhinhas enquanto vêem filmes, chupam o ar quando a acção se torna quente e acelerada, chupam nos polegares para se parecerem com Charlton Heston no cartaz do filme "Ben-Hur", etc. etc. Pois bem, todo esse ar aspirado tem que sair em algum momento, mas a nossa sociedade congela a sua saída natural no lobbie dos cinemas e é por isso que vemos os sujeitos saírem dos cinemas com uma intensa ginástica facial, tentando reter noventa minutos de sucção. Devemos ser livres de expelir esse ar e compreender que aquilo que vimos no écran é uma equívoca representação da vida real, com uns mamíferos encantadores a fingirem ser santos e pecadores.

3. O realismo só acontece no écran quando a película fica entalada no projector e a imagem começa a ficar cheia de bolhas. O que já só acontece raramente e deixará definitivamente de acontecer quando todas as salas de cinema estiverem equipadas com projecção digital. Até lá, um instintivo medo do escuro manifesta-se quando a luz de projecção falha... aumentado ainda pelas pequenas criaturas peludas, com longas caudas, que se escondem por debaixo dos assentos. A natureza elétrica do sexo torna-se evidente quando sentimos o sopro do ar na nuca, exalado pelo prevertido da cadeira da esquerda a tentar estabelecer contacto com o nosso joelho. É nesses momentos de verdade que o cinema revela a sua faceta realista.

4. Mas, o cinema é uma criatura ambígua, de dupla face. Essa outra face é constituída por uma paleta de cabeleiras pintadas, maquilhagem de pastel de nata e vísceras humanas agarradas a fatos desenhados por anões analfabetos e tarados sexuais. Superestrelas que batem nos filhos com cabides de pendurar casacos ou rolos de arame farpado e que lhes inpingem refrigerantes com potência suficiente para lhes arruinar as dentaduras, mulheres envelhecidas sofrendo numerosos edemas, homens viris condenados a excruciantes regimes de exercícios a fim de conservarem os seus posteriores sodomizados em perfeito estado de conservação, actrizes treinadas para mostrarem ao mundo as maravilhas da libertação da celulite, celebridades alcoólicas que vertem em livros o seu passado para que todos nos possamos maravilhar com a uma vida miserável limpa pelo renascimento cristão, ou da Cientologia, tanto faz, harpias cheias de herpes que destroçam fornicadores, crianças inocentes que cantam e dançam ao longo da "estrada de tijolos amarelos" rumo à dependência das drogas e ao veneno das bilheteiras.

5. Esta é a outra face do cinema...a face que vende tablóides e cria lendas, uma herança cultural recusada, devorada por um olho ciclópico imaginado para "entreter", excitar e ensinar; a FORMA ARTÍSTICA do nosso tempo.



1 comentário:

Hélder disse...

Caro Arnaldo, tenho dado comigo a pensar que a vida talvez fosse mais fácil se a vivêssemos como se fosse numa trilha cinematográfica. Aí as coisas são, em regra, muito mais definidas: os bons são bons, os maus são maus. Não há lugar ás pessoas reais, que são uma miscelânea de coisas boas e más - nem pretas, nem brancas - mas isso sim, com uma paleta de cinzentos que tem mais de sete mil milhões de tonalidades. De resto, quando algum cineasta se atreve na abordagem de personagens mais reais, mais mistas quanto à sua essência, a plateia fica confusa pela abordagem mais aproximada da realidade. Nem ali conseguiram alienar-se daquilo que fugiam... Abraço!