domingo, 31 de outubro de 2010
O TOCADOR DE BAIXO
Eras homem de poucas falas, o que só ajudava a aumentar as dimensões do mito à tua volta. Durante anos julguei que era um truque para engatar miúdas. Mas não. Tudo o que girava à tua volta era um composto nebuloso de lenda e mistério. Nem a tua idade certa conseguimos saber. Enquanto ainda andávamos a “pastar” no liceu, já tu trabalhavas há vários anos naquela editora de livros para crianças. Mas no bairro os mais velhos garantiam que nem sempre tinhas sido assim. Foi quando voltaste de África que te transformaste num ser diferente…o único que eu conheci. Calado, misterioso, que acompanhava todas as nossas maluqueiras com o baixo, sem questionar. Nunca havia conflitos de interesse criativo. Esperava pelo teu autocarro à quinta-feira, o dia dedicado à falta de jantar, para seguirmos juntos para o ensaio. Caminhava a teu lado como um tagarela. Despejava baldes de palavras e recebia um sorriso ou um resmungo de volta, uma vez por outra. Quando alguém te perguntava directamente qualquer coisa sobre a vida, a morte, a guerra, a tua resposta não variava muito. Inclinavas-te meditativo sobre o baixo a contemplar as caixas de ovos que isolavam as paredes no estúdio. “Sabes, pá…há coisas que só passando por elas…Cada um lê o mesmo livro de maneira diferente.” E pronto. O resto da noite selava-te a boca e só os dedos agarrados às cordas do baixo se faziam ouvir.
Demorei muito tempo a perceber se era teu amigo. Eu achava que sim embora não tivesse a certeza. Nunca te perguntei nada sobre isso para não ouvir uma resposta daquelas que não queria. Mas houve uma tarde em que percebi. Foi quando estávamos a tocar numa escola nos arredores de Lisboa. Estavas dentro da música ou a música estava dentro de ti, o que vai dar ao mesmo. A minha batida saía ao ritmo correcto ao fim de meses a assassinar bombos e tambores. E o baixo parecia que tocava sozinho, sem esforço. Tu dançavas para lá e para cá como um deus que acabava de regressar a casa. O teu casaco comprido desenhava a envergadura das asas que te levavam para muito longe, para os paraísos da harmonia. Eras tu sozinho e nada mais existia. Ias caminhando e dançando na direcção da luz dos bastidores, deixando para trás uma sombra mágica de expressão, uma forma para a qual todas as palavras eram supérfluas. Nessa noite transmiti-te essa “fotografia” da silhueta do baixo que desaparecia a caminho da luz. Só não te disse que tinha percebido que éramos amigos. Tu viraste metade de uma caneca de cerveja e arqueaste as sobrancelhas numa expressão de espanto natural. “Sabes, há coisas que só passando por elas… cada um lê o mesmo livro de maneira diferente”.
E lê mesmo. Ontem não foi muito agradável ler uma costura gigante a decorar a metade rapada da tua cabeça. Parecia um adereço “Punk” fora de moda. Nem me é agradável antever os teus próximos dias enfiado no folclore do combate ao tumor que era maligno, ao desalinhamento das diabetes, à progressiva implosão do corpo. E à pergunta da praxe, respondeste com a mesma calma de sempre. “Sabes como é…só passando por elas”.
Sei que somos amigos, sei que não tens medo. Talvez uma pequena tristeza de estar agora a passar por isto tudo. Mas tens uma vida cheia de acontecimentos fantásticos que não partilhaste com ninguém, uma “marmita” existencial plena, um bilhete que te permitiu andar em todos os carrosséis. A tua partida não será mais que uma repetição. A tua condição divina reconfirmada, repleta de lendas e mistérios que te acompanharão como bagagem. És um deus que eu vi um dia a caminhar para a luz a balouçar um baixo que tocava sozinho. Uma silhueta de quem fui amigo. Uma canção que nunca vai sair de moda porque não pertence a tempo nenhum. Se esperares um bocadinho, daqui a nada estou a dirigir-me para a saída do palco. A mesma por onde passaste. Vou deixando para trás uma silhueta muito mais pequena que a tua e voltar a beber umas cervejas seja lá onde for. Porque…há coisas que só passando por elas… E o livro que me emprestaste lê-se de muitas maneiras. Uma por cada leitor que lhe pega…
Artur
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