quarta-feira, 27 de outubro de 2010
CADAVRE EXQUIS
"Le dur désir de durer" - Paul Éluard
NOTA PRÉVIA: Um amigo, cujas opiniões muito prezo, alertou-me para o facto de os meus pobres escritos neste blog estarem feridos de morte pela raiva, acrimónia e azedume que encerram. Assim, louvando-me no poder e justeza dos seus argumentos, resolvi emendar-me, converter-me, corrigir-me, tornando-me cordato, sensato, consensual, apaziguador, materializando-se este esforço na:
CARTA ABERTA AO CANDIDATO, SUA EXCELÊNCIA PROFESSOR DOUTOR ANÍBAL CAVACO SILVA.
V. Exa.:
Serve a presente para transmitir a V. Exa. o desgosto que me causou o tom de cerimónia fúnebre com que foi embrulhado o anúncio da candidatura de V. Exa. a um novo mandato como Presidente da nossa República. Uma ocasião que, outrossim, se queria festiva, cheia de esperança e confiança no futuro, revelou-se afinal uma função soturna, cinzenta e sem qualquer rasgo de alegria ou de emoção. Qualquer coisa assim como uma comunicação ao país de uma vitória antecipada, a fazer lembrar as comunicações do defunto e saudoso Almirante Américo de Deus Thomaz. Mas, não se iluda V. Exa. quanto a isso, não foi apenas uma questão de estética ou de estilo que me embaraçou. Pelo contrário, foram diversas questões substantivas e de fundo que acabaram por defraudar as altas expectativas que depositei na solene ocasião, e que passo a partilhar com V. Exa.. Sem qualquer preocupação metodológica, começo pelo fim, já que por algum lado se há-de sempre começar. Lamento profundamente que tenha declarado não acreditar em utopias nem fantasias. Relembro-lhe que utopia é um derivado da palavra grega utopos, que significa "lugar que não existe". Ora, será difícil que alguém acredite ou deixe de acreditar em lugares que não existem. No entanto, se quisermos levar a hermenêutica um pouco mais além, sempre diremos que as utopias, não sendo questão de crenças, são construcções intelectuais, mundos possíveis, alternativos, sistemas de organização política, social e económica relacionadas com determinadas estruturas conceptuais que respondem a um imenso estendal de questões que os homens sempre colocaram sobre as formas de vida em comum, de progresso e de aperfeiçoamento material e espiritual. Nesse sentido, uma obra como "A República" (escrita por Platão no século IV a.c.) pode ser considerada como uma utopia, para além de ser uma espécie de radiografia do pensamento político e filosófico da sua era, característica partilhada por todas as utopias dignas desse nome. Por outro lado, a afirmação ainda me espantou mais quando me recordei que V. Exa., há alguns anos, declarou ser "A Utopia" o seu livro preferido. Na altura, enganou-se, atribuindo-o a Thomas Mann (escritor alemão do século XX, autor de "A Montanha Mágica", "Morte Em Veneza", etc.), quando ela foi escrita por Thomas More (escritor e santo inglês do século XVI, que concebeu a sua obra como idealização de um Estado capaz de realizar plenamente as potencialidades humanas, dentro de critérios ético-morais e humanistas abrangentes. De passagem, note-se que a obra é usualmente considerada como uma crítica feroz da situação política e social da época). No que às "fantasias" diz respeito, cabe-me perguntar se haverá maior fantasia do que aquela que consiste em fazer promessas que consabidamente não podem ser cumpridas; em 2005 V. Exa. referiu-se ao seu vasto conhecimento em matéria económica e financeira e experiência nesses domínios como uma mais-valia da sua eleição, já que poderia colocar experiência e conhecimento ao serviço do país, melhorando-lhe a condição. Ontem, reiterou essa mesma promessa fantasiosa. Também considerei um pouco excêntrico o anúncio relativo às suas despesas de campanha : metade do montante legalmente autorizado e nada de cartazes -também conhecidos como "outdoors". Excêntrico, mas moralizador. Pedindo-lhe que me perdoe o atrevimento, sugeria-lhe que abdicasse das pensões e reformas que acumula com o seu salário, tornando assim o seu exemplo universal e poderosamente motivador para toda a classe política, algo assim como um imperativo categórico (I. Kant "Crítica da Razão Prática", Alemanha, século XVIII). Não me surpreendeu a magnífica avaliação do seu mandato, não podendo no entanto concordar com essa visão mirífica. Com confessada mágoa declaro que tenho do seu mandato uma péssima opinião, que me leva a classificá-lo na categoria mau ou, vá lá, medíocre. Não entrarei na questão da interpretação que V. Exa. faz dos poderes presidenciais, pois tal conduziria inevitavelmente a um nível de enunciados psico-morais no qual não pretendo envolver V. Exa.. Restrinjo-me a enunciar dois factos exemplificativos da interpretação errónea da sua magistratura: durante o ano de 2009 (ano em que se realizaram três actos eleitorais), V. Exa. arrastou durante meses a questão do estatuto político-administrativo dos Açores, abrindo uma guerra desnecessária com o Governo e o partido que o apoia, tentando, quiçá, favorecer o principal partido da oposição, na altura dirigido pela sua amiga pessoal e correlegionária política, Dra. Manuela Ferreira Leite. Esta leitura do facto sustenta-se na evidente falta de razões para esse arrastamento e por essa dilação. O segundo facto consiste na lamentável questão das "escutas" e da comunicação que então fez ao país, em plena campanha eleitoral. Se a intervenção presidencial no jogo partidário e eleitoral não foi propositada e resultou de mera coincidência temporal, torna-se ainda mais grave, revelando grande inconsciência política. Finalmente, sublinho o facto de V. Exa. se ter interrogado, estendendo a interrogação a todos os portugueses e comprometendo-os na eventual resposta, sobre o que seria o país se não tivesse beneficiado da sua magistratura. Pior ? Seria muito difícil...
Espero que me perdoe o desabafo e este partilhar de mágoas e decepções, evidenciando uma manifesta incapacidade de me exprimir em português correcto e tendo que recorrer a um vocabulário rude e a uma síntaxe pobre. Não me agradeça; eu pertenço à metade dos portugueses que gostariam de o ajudar a terminar com dignidade o seu mandato.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com os melhores cumprimentos, colocando-me ao seu dispor para tudo aquilo que entender necessário
Arnaldo Mesquita
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2 comentários:
Um texto de grande clarividência muito bem escrito. Parabéns.
O texto, muito bem fundamentado, parece-me (ainda assim) brando! O autor poupou ao candidato algumas "barracas" que o teriam remetido para o provincianismo em aguardente de figo que caracterizou a sua governação. Refiro-me à forma como foram lidados assuntos tais como a gestão da Região Autónoma da Madeira e o seu líder [cf. o Senhor Silva"]; ou a aprovação do estatuto civil para casais do mesmo sexo [sentida como dolorosa e distanciada, ao fim de longa expectactiva]. Estes são alguns exemplos da contradição primária do pensamento político do candidato que, tal como o texto muito bem demonstra, não está à altura do que os portugueses esperam - e devem receber - no alto cargo a que agora volta a concorrer.
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