quinta-feira, 4 de junho de 2009

BOIADAS


Num colégio interno de população exclusivamente masculina, onde convivem centenas de rapazes dos 10 aos 18 anos, tudo o que lá se passa é intenso, todas as emoções são inevitavelmente fortes e todas as gargalhadas acabam à beira do colapso. Das pedras do chão até à abóbada celeste, nada tem sinal fraco. Naquela casa bicentenária os claustros serviam de sala de visitas para as grandes cerimónias. Para nós, os habitantes da povoação, eram como que o largo central da aldeia, local onde tudo se passava a quase todo o tempo. Cada pedra daquele claustro tem mais do que uma história para contar. O claustro (ou claustros) estava nas manhãs antes das aulas; na festa do 1º de Dezembro em que o solstício de Inverno se brindava com uma encenação da Restauração ( a Mocada) finalizado com uma batalha entre os dois anos mais antigos; nas tardes de Primavera onde se decoravam a cruz com o capote e a barretina para sinalizar o fim do ano; no contacto com o mundo exterior na medida em que a porta principal do Colégio se encontra no lado Este da mesma estrutura. Nos claustros eram praticados também uma série de rituais oficiais desde o momento pelos antigos alunos mortos em combate como a investidura dos mais novos em cavaleiros.

Mas o que hoje me apetece contar-vos é uma história diferente. Uma história que fala de solidão e de gargalhadas, de solidariedade e sobrevivência, de coisa nenhuma e de tudo isto ao mesmo tempo. A “Boiada” consistia numa instituição recreativa não oficial. Os claustros eram um dos cenários preferidos para o fazer. Tratando-se de um mundo extremamente rigoroso, disciplinado e hierarquizado, os alunos ocupavam a base da pirâmide do poder naquela casa. Levávamos de Professores, de oficiais, corríamos à frente de vigilantes, continuávamos a levar dos mais velhos… Enfim, uma alegria. A nós, anónimas vítimas de toda esta pesada estrutura, restava-nos inventar uma forma de retaliar feita à medida das nossas possibilidades. Deste modo inventámos a “Boiada” de claustro. Consistia esta em nos distribuirmos estratégica e camufladamente pelos intervalos das arcadas atrás dos pilares. No andar de cima ou no de baixo conforme o plano imediato de fuga. Entrada a vítima começava o chavascal. Flores da mais fina retórica decoravam-se das mais elaboradas ofensas de que nos conseguíamos lembrar. Seguia-se o plano de fuga. Cada um para seu canto, sala de aula, casa de banho, Biblioteca, de preferência rápido e sem demoras. A vítima, na maior parte dos casos fazia que não era nada com ele e assim ficava respeitado o espaço da válvula de escape dos jovens alunos. O esquema funcionava de tal forma bem, que em pouco tempo, da escolha selectiva dos piores resolvemos democratizar a “Boiada”. Ficávamos ali horas à espera, cada um atrás do seu pilar até chegar alguém. Indiscriminadamente, viesse quem viesse, o brinde estava reservado para o primeiro que entrasse na área dos claustros. Professor, oficial, vigilante ou aluno mais velho. Os mais batidos e atentos evitavam o átrio nu e caminhavam apenas por baixo das arcadas. Assim a banda sonora era mais suave visto que o alvo tinha espaços mortos, passagens onde não se conseguia focar.
Numa tarde de terceiro período, pouco depois do fim das aulas, resolvemos ficar uns quantos para trás e esperar por um alvo atrasado. Até ao jantar havia tempo. Lá fomos esconder-nos até que alguém o identificou. “Vem aí o Nónes”.
O “Nónes” era um simpático oficial lateiro já com alguma idade que não fazia mal a uma mosca. Mas…era ele que havia, era ele que tinha de ser sacrificado. Ia começar a “Boiada” quando de repente, tudo ficou suspenso. Um gás soltou-se de forma ruidosa fazendo eco naquelas paredes. Olhámos uns para os outros. Que altura mais estúpida para executar a gracinha. “Foste tu? - Não! -Foste tu ?- Não !- Foste tu? – Não ! Outra descarga voltou a ecoar. Era o “Nónes” que, julgando estar sozinho nos claustros dava largas à imaginação gaseificada. E de cada vez que descarregava rematava com um “Oh diabo!”. Uma nuvem de hilaridade contida caiu sobre nós. A “Boiada” terminou antes de começar. Corremos para a casa de banho para podermos rir à vontade.
Ali, com aquela pequena história compreendemos uma série de lições, daquelas que só a Vida nos ensina. Primeiro, que quanto mais se reprime alguém, mais a solidariedade e a camaradagem se desenvolvem em laços extremamente fortes. Quem se julga só, é apenas porque ainda não percebeu que o está tanto como estão os outros. Nascemos e morremos sozinhos. Não há drama nenhum nisso. E, em certos dias, estamo-nos completamente a cagar…

ARTUR

1 comentário:

A.Teixeira disse...

Um excelente compromisso entre o cómico e o filosófico!

Posso sugerir que, depois de um inocente, escrevas sobre alguém do outro extremo do espectro, um culpado!

O Nogah-Nogah?