quarta-feira, 17 de junho de 2009

UM AMOR DE SEMPRE


(Foto de Sofia P. Coelho)
Serão talvez fantasmas que ocasionalmente resolvem visitar-me em forma de memórias. Não foi só a estúpida morte da Matilde que deixou um vazio enorme nas nossas vidas. Foi aquela sensação em forma de náusea do desperdício de tantas e tantas vidas das maneiras mais absurdas que podemos imaginar. Lembro-me que três putos saltaram do viaduto Duarte Pacheco numa noite de Verão, dos que já saíram com os pés para a frente daquele túnel desactivado na encosta do Casal Ventoso, de um acidente na marginal em que cinco pessoas foram parar ao mar e morreram todos, de um bacano que se enforcou porque a namorada o deixou, do outro que acabou com uma seringa pendurada no braço num parque de estacionamento, de dois tipos que morreram durante a recruta num Serviço Militar Obrigatório de treino para uma guerra que já tinha acabado … Tantos que nunca conheci e outros tantos com quem partilhei cigarros, música, sonhos, esperanças de dias melhores. Não, não os consigo esquecer, nem quero. Talvez porque eu poderia ter sido um deles e não fui. Talvez porque me culpo de ter sobrevivido, de ter ficado para trás para contar a história deles…
Há nisto tudo um gosto mórbido pela morte? É bem possível. Mas também há, no meu ponto de vista, um amor difícil de perceber. Há escolhas que não dependem da nossa vontade. Não escolhi apaixonar-me pela Matilde a um ponto de não o conseguir voltar a fazer por mais ninguém. Ficou cá a sua recordação enterrada na minha cabeça como uma parte integrante de mim próprio. Tal como a memória daqueles todos que se foram muito antes do tempo deles, porque sim.
O que é que me dói? Dói-me um país autista alegremente empenhado na disputa partidária, um povo sem memória que nem os mortos das guerras respeita, uma época em que os egos se masturbavam em memórias que nem lhes pertenciam, de uma crise económica violenta sem espaço para nada, dói-me o desperdício sistemático de talentos, qualidades, vidas que não foram suficientemente fortes para conseguir sobreviver a tudo isto. Dói-me o esquecimento, a ignorância ostentada como orgulho, a mediocridade premiada, a fantochada da vida que se exibe em imagens afastadas da realidade, a ganância sem limites… Sei lá o que é que me dói se a dor vive em mim como um braço ou um órgão desde que nasci.
Sei que a sua função é precisamente identificá-la, ajudar-me a viver com ela. Para uma
melhor qualidade de vida. Por isso estou aqui sem reservas, não porque de repente a Psicologia se me tornou a resposta, mas porque já não tenho mais lugar onde ir buscar força.
Por isso lhe peço: ajude-me como souber mas não me mate o amor que tenho pela Matilde e pelos outros. Ajude-me sem anular o meu Ser. Sem atrofiar as ideias que sempre tive sobre a Vida, a Liberdade e o Amor entre as pessoas. Ajude-me a um ponto em que os fantasmas me continuem a visitar sem que entre em desespero. Ajude-me a continuar vivo apesar de ter muito poucas razões para o fazer.
Ajude-me.

(extracto de “Sermão aos Matraquilhos”, fala de Tiago.