quinta-feira, 18 de junho de 2009

TERRA E LIBERDADE




LAND AND FREEDOM
Ken Loach
Reino Unido, 1995

Na história da Península Ibérica do século XX, a Guerra Civil Espanhola (1936 – 39) ocupa um lugar de destaque por várias razões. Em primeiro lugar por, numa guerra intestina se ter registado uma participação excessivamente numerosa de países estrangeiros, quer por iniciativa oficial, quer por iniciativa individualizada dos próprios cidadãos. Descrevendo o conflito como o “campo de manobras europeu”, Von Thoma, o comandante de uma unidade alemã de carros de combate que combateu pelo lado dos nacionalistas, essencializou a sua significação internacional (*).
Espanha foi durante três anos o laboratório europeu para a catástrofe seguinte, ou sela, a II Guerra Mundial. Homens e material foram utilizados, ao estilo de ensaio, numa medição de forças e de capacidade antes do conflito aberto à escala europeia e mundial. Hitler e Mussolini do lado rebelde franquista e Estaline do lado republicano, distribuíam-se no mosaico das forças litigantes. Por iniciativa pessoal de vários estrangeiros, o exército republicano viu-se também “invadido” por voluntários, sendo o mais esclarecedor exemplo dessa contribuição as Brigadas Internacionais. Nas trincheiras estiveram homens universais que mais tarde imortalizaram o conflito através de romances, reportagens, fotografias e filmes documentais. Orwell, Hemingway, Malraux, Robert Capa, dos Passos, H. G. Wells, Simone Weil, Joris Ivens, etc, formaram a elite intelectual e artística de uma geração que, mais tarde veio a marcar de forma brilhante o panorama criativo das suas actividades. Foi a última geração a participar numa guerra por ideais.
Tubo de ensaio para o conflito total que se aproximava e último reduto de idealistas numa guerra, eis a essência da Guerra Civil Espanhola. Um tema que, nunca tendo estado ausente da História Contemporânea, se inscreve no cinema por várias ocasiões, tornando o objecto de estudo histórico ainda mais relevante. Prémio “Félix” para o melhor filme europeu de 1995, LAND AND FREEDOM de Ken Loach leva-nos aos idos de 36 ao sabor do vasculhar de uma caixa de recordações repleta de fotografias, panfletos e recortes de jornal da época. Após a sua morte, a neta descobre uma parte esquecida da vida do avô David, um jovem idealista de Liverpool que se ofereceu aos vinte anos como voluntário para Espanha. Uma vez lá chegado, apesar de membro do Partido Comunista Britânico, David é colocado numa milícia do POUM ( Partido Obrero de Unificacion Marxista), de simpatias anarquistas e trotskystas, por uma questão de agrupamento dos elementos estrangeiros na mesma estrutura. Compostas essencialmente por operários, sindicalistas, trabalhadores administrativos, artistas e intelectuais, as milícias funcionavam em clima de tomadas de decisão em assembleia geral, sendo os seus comandantes nomeados por eleição. Nada convencional para a época, muito menos para qualquer exército digno desse nome. Mas as suas razões também pouco tinham de convencional. Entre vários espanhóis, David vai combater ao lado de um irlandês do IRA, um escocês, um americano e um francês.
Enquanto decorre o filme, é impossível esquecer Orwell, bem como cenas que atingem a analogia com algumas das mais belas páginas da sua “Homenagem à Catalunha”. Os piolhos nas trincheiras (que chegavam a incomodar mais que o próprio inimigo), as lutas de montanha para montanha, o espírito sonhador e indomável das milícias. Tal como o seu compatriota, Loach vai também à essência de uma das dimensões mais relevantes do conflito do lado republicano, aquela que poderá mesmo ter decidido o rumo final dos acontecimentos e o subsequente triunfo do general Franco. Estamos a falar das desavenças entre as organizações de esquerda, mais concretamente entre anarquistas e comunistas.
Em meados da década de 30, à semelhança de Portugal durante a I República, os anarquistas detinham a maior central sindical espanhola, a CNT. Um milhão e meio de homens e mulheres distribuída com particular incidência por Barcelona e pela maior parte das zonas rurais da Andaluzia. O Partido Comunista, na mesma altura, contava com dez mil associados, havendo cem mil inscritos na central sindical a ele afecta, a CGT (*). A sua hegemonia na sociedade espanhola esteve sempre muito mais perto da luta política de bastidores nos corredores do poder do que da aderência popular. Nos últimos tempos da guerra, na tentativa de reunir sobre si a direcção e o controle absolutos do exército republicano, o Partido Comunista lança a partir de Barcelona uma campanha de descrédito e desactivação das forças anarquistas, acabando por as neutralizar. A breve descrição deste significativo e decisivo episódio é um pouco do percurso de David que, já em Barcelona, acabará por renunciar às Brigadas Internacionais e rasgar o seu cartão de membro do PC britânico.
Enquanto que os falangistas tinham a ideia de endireitar Espanha com “uma arma e um missal”, os anarquistas acreditavam poder fazê-lo com “uma arma e uma enciclopédia” (*). A emancipação da mulher, a instituição do divórcio, a alfabetização das populações, a colectivização das terras, etc., eram algumas das ideias defendidas pelos anarquistas. Ideias em maior número do que a capacidade organizativa e uma vontade de transformar superior à simples luta política ditaram o destino destes últimos heróis românticos. O episódio da ocupação da Central telefónica de Barcelona em Abril de 37, tanto em TERRA E LIBERDADE como em “Homenagem” à Catalunha”, fica amplamente documentado como emblemático da última fase da guerra.
Propositadamente “arrastadas”, embora excelentemente esclarecedoras, são outras cenas do filme, como uma onde se discute a colectivização das terras num “pueblo”, e outra onde um pelotão das Brigadas Internacionais obriga a milícia a depor as armas e entregar-se. Com uma brilhante carreira em auditórios europeus, particularmente em Espanha, TERRA E LIBERDADE é uma das iniciativas que melhor comemorou o sexagésimo aniversário da Guerra Civil. Um lugar onde a utopia não morreu, embora lá tenha deixado enterradas uma boa parte das suas esperanças.

Artur Guilherme Carvalho

(*) Thomas, Hugh – A Guerra Civil Espanhola, Lisboa, Pensamento – Editores e Livreiros Lda. 1987

Artigo publicano na revista CINEMA, nº 25, Setembro 1996

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