quarta-feira, 24 de junho de 2009

UMA LONGA EXIBIÇÃO

Impreterivelmente às Quartas-Feiras entramos à hora do costume no restaurante do costume e caminhamos para a mesa do costume. Sentamo-nos num ritual fechado, como dois sacerdotes a caminho da reforma e passamos aos preparativos de sacristia antes da celebração da missa. Os copos, as paramentas, a página do sermão escolhido, tudo se desenrola no automatismo das mãos que recebem o cumprimento do mesmo empregado de sempre, a entrega da ementa, o olhar propositadamente demorado sobre a lista para escolher sempre o mesmo prato e a devolução. O jarro de vinho da casa chega sozinho, flutuando no ar em trejeitos de nave espacial não tripulada a evitar colisões com as cabeças dos outros clientes, a esquivar-se ao trajecto dos outros empregados, corpos celestes errantes que se intrometem n sua rota. Bebemos o meio copo do costume, antes de chegar a comida e grunhimos qualquer frase de circunstância. A última jornada do futebol, a política, o programa que deu ontem na televisão. Brevemente cada um diz qualquer coisa, estando isso muito de longe de qualquer modalidade de conversação. Raramente existe continuidade entre as nossas falas. Nunca percebi porquê ao longo de toda a minha vida e não vai ser agora que isso me poderá interessar. Às vezes até daria para rir ao observador exterior. “Nome? – Passo! Estado civil? Católico não praticante! Desportos preferidos? Dois filhos. Um com 12 e outro com 15.”
Finalmente a comida chega e com ela termina o sacrifício de dizer alguma coisa. A mastigação substitui a obrigação das palavras e o silêncio volta a reinar.
Nunca falámos directamente sobre coisa nenhuma, apesar de uma ou duas tentativas da minha parte. Não sei porquê, mas o silêncio entre nós foi sempre um dogma inquestionável, um muro intransponível. Uma regra que me foi imposta e que acabei por aceitar. Tal como a avó, que depois da morte do tio Vasco na guerra, insistia sempre em pôr o talher dele à mesa. Sozinha ou em jantares de família, o lugar dele estava sempre ali, observado de longe pelo seu retrato a preto e branco fardado, dias antes de embarcar para África. Ninguém dizia nada, ninguém questionava. Passou-me pela cabeça um dia pedir-lhe a travessa das batatas. O silêncio que se seguiu foi mais violento que uma chuva de artilharia. Mas ninguém disse nada. Nem a avó, nem tu quando chegámos a casa. A avó continuou a jantar com o tio Vasco até que foi para o lar. Durante algum tempo ainda reclamou: “Falta aqui um talher”. Até que percebeu que ninguém queria saber. Lá foi ficando, sem talher e sem vontade, a encolher para dentro como uma folha de Outono. Quando ela morreu levei o retrato do meu tio para minha casa. As minhas conversas com ele são muito mais animadas e emocionantes do que contigo. Se estivesse aqui a almoçar com o retrato à minha frente, podes ter a certeza de que se falaria muito mais. Agora percebo porque é que a avó o tinha à mesa a todas as refeições
Vêm os cafés e o ritual aproxima-se do fim. Dizes qualquer coisa sobre o tempo e eu respondo que as próximas eleições qualquer coisa. Assim como há pessoas condenadas a não se entender também há pais e filhos condenados a não comunicar. Constroem pacientemente ao longo dos anos uma vedação de silêncio, uma gramática com meia dúzia de regras e é suficiente. As relações, em vez de construídas, encenam-se como uma peça de teatro. Ensaiam-se durante anos para que tudo corra no automático no dia da representação. Há famílias inteiras que mais parecem óptimas companhias de teatro. Quem ganha com isto são os psiquiatras, que também têm direito à vida.
Logo à noite há bola na televisão, o apartamento não é muito grande mas chega para mim e para o gato. A Amélia cansou-se do silêncio e foi-se embora, mas julgo que tu ainda não te apercebeste disso. Vou abrir uma ou duas latas de cerveja e colocar o retrato do meu tio ao meu lado com o gato a dormir entre os dois. Vou ver o jogo sem som e deixar a casa entregue ao silêncio, interrompendo-o aqui e ali com um arroto cavernoso. O tio há-de rir-se, como eu. Na Quarta-Feira não te vou contar se o homem fardado se deitou com uma grande bebedeira, nem se o gato saltou com o meu arroto cavalar especial, nem se todos nos desatámos a rir que nem uns doidos no fim. Na Quarta-Feira vou representar a peça do almoço em homenagem da “Angústia para o Jantar” do Sttau Monteiro. Uma peça muito menos interessante e chata de ver. Apesar de tudo com um recorde invejável de exibições.
ARTUR

2 comentários:

Clarice disse...

O silêncio que mais gosto é o que se ouve… no olhar, no sorriso, enquanto olho alguém dormir, ou quando alguém lê por perto…o silêncio entre uma frase à espera de outra frase, aquele silêncio perguntador, que desafia respostas, ou que “belisca” perguntas… o silêncio de rir à gargalhada com a mão à frente da boca para “brincar” que não existe, o silêncio da espera de um regresso… ou apenas o silêncio ao adormecer…desse silêncio, eu gosto!
Mata-me o silêncio que se ergue como muro, mudo… incompatível com a vida e como aqui se pode “ouvir” (lendo), até com a morte…

ganda malha!:)

escrevi tanto... sorry!

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Clarice,
De facto, o silêncio é um óptimo tema de conversa para escrever. É sábio, abre as portas da imaginação e permite desenvolver sem limites. Escreve o que quiseres neste espaço. Sem restrições. Aqui somos todos livres. Obrigado pela tua visita.