quinta-feira, 22 de novembro de 2007

AVÓ

A primeira recordação que tenho de ti é a da tua voz a trautear uma canção de embalar sem letra enquanto me ias abanando ligeiramente o corpo para adormecer. Era uma área inventada por ti, uma vocalização feminina de uma ternura infinita que eu bebia até cair exausto na terra dos sonhos. Lembro-me da luz de ligado do ferro eléctrico que era a primeira coisa que via quando acordava da sesta a meio da tarde e do “olho mágico” verde da telefonia onde ouvíamos os “Parodiantes de Lisboa” à hora do almoço. Lembro-me das sopas de cenoura, das sandes de frango com manteiga que tu me fazias para comer no intervalo da escola, dos cromos dos jogadores de futebol que íamos comprar avulso no senhor Eduardo, duas ruas a seguir à nossa e daquele bolo maravilhoso que fazias aos Domingos. Lembro-me quando ia contigo no eléctrico a uma rua que ficava ali perto do Chiado receber a tua reforma e do homem a cavalo a que tinha direito na secção de brinquedos do Grandella, imediatamente antes do bolo de arroz na pastelaria. Lembro-me de ti, das milhares de faces que compunham o teu afecto, lembro-me da suavidade das tuas mãos que mais tarde secaram como as folhas no Outono, do teu rosto ora compreensivo ora castigador, da cumplicidade que fomos construindo ao longo do tempo em breves jogos de adulto e criança, às escondidas e à cabra-cega com o mundo lá de fora que dificilmente nos conseguia perturbar. Lembro-me das férias e dos horários rígidos da digestão na praia antes de poder ir para o banho, das sestas forçadas e das gemadas matinais. Lembro-me que sempre disse a mim mesmo que haverias de saber o quanto te agradeço por teres sido tão importante numa fase fundamental da minha vida, o quanto te amei... o quanto te amo enquanto Pai, Filho e Espírito Santo da minha infância. Lembro-me de quase tudo quando penso em ti, de um tempo em que tudo fizeste para que o meu mundo de criança pudesse navegar tranquilamente enquanto crescia, seguro e afastado das tempestades. Agora como então, lembro-me de ti quando não sei a resposta, quando estou perante uma encruzilhada sem saber que caminho escolher, quando o calmeirão da turma anda atrás de mim para me bater, quando cometo um erro e não percebo porquê. Lembro-me da tua voz a trautear uma canção de embalar, elemento suficiente para afastar os pesadelos para longe e retornar à paz do lar em que cresci contigo. Lembro-me de ti e nessa lembrança repito todos os dias o muito que te amo, o muito que eu queria que tu soubesses isso... avó.

ARTUR

3 comentários:

redjan disse...

.... e que tal como uma outra velha e acabada Avó, Alice de seu nome, vinda de tempos de fausto afogar-se em revoltas hordas de liberdade abusadas, soube no momento de partir chamar e deixar em mão de adolescente, uma secreta senha para acalmias feitas de longe, de um Céu onde se encontram velhos assim , que fazem da nossa vida o caminho que encontraram no fim.

Posso deixá-las juntos Artur ?'

Carlos Lopes disse...

Esta foi à Lobo Antunes. E tu sabes que eu "conheço" mais ou menos o mestre. Mas nunca havia reconhecido o mestre em ti.
Fabuloso!

Artur Guilherme Carvalho disse...

red :tenho a certeza que estão as duas a rir-se que nem umas perdidas a observar as nossas prosas...e a abanar a cabeça em sinal de aprovação. Devem star juntas,de certeza. A Alice e a Ilda.
Carlos: Se tu o dizes, quem sou eu para te contrariar. Gaita!! deixaste-me desarmado. Um grande abraço, amigo
ARTUR