Ás vezes o silêncio entristece, outras consegue transformar-se no melhor companheiro que podemos ter. Li com atenção a última crónica de António Lobo Antunes publicada na VISÃO desta semana, intitulada “Adeus”. Desde os treze anos, desde que me chegou às mãos “Os Cus De Judas” que nunca mais perdi uma palavra deste que considero o Mestre por muitas razões. Nesta crónica ele despede-se enquanto autor, deixando no ar a publicação de mais um ou dois títulos antes de fechar a loja. A obra fica aí para quem quiser aproveitar, sussurrada por uma voz indefinida, não pela mão de quem escreve. Mais do que o amor, a solidão e o riso, Lobo Antunes foi um elemento chave na análise do “Inconsciente Colectivo” das ultimas décadas do século XX. Ele e Herman José. Se este foi a fotografia, a caricatura do colectivo, António Lobo Antunes foi o psiquiatra, aquele que mais fundo penetrou na intimidade desse “Inconsciente” e tentou trazer para a superfície pedaços para análise, rostos, pensamentos, comportamentos. Razões, não. Nesta área não se trabalha com razões mas com emoções, com causas e efeitos, com culpas, faltas, remorsos, dores e um sem fim de ferramentas. Ao fim de muito tempo imerso neste gigantesco tanque sem sentido, acaba por, ele próprio perder o sentido, fica surdo (literalmente), autista do mundo (como a Clara Ferreira Alves escreveu uma vez), escrevendo documentos autistas onde os personagens falam e se interrompem, trocam de voz, de cenário, com uma enorme dificuldade para o leitor conseguir descortinar o que está a ler. Mas, tal como Joyce, Lobo Antunes sabe perfeitamente o que está a escrever, embora num limbo de percepção difícil de definir entre as margens finais do texto literário e as comportas escancaradas do inconsciente. A meio da obra, já não é literário o seu texto, já não é coisa nenhuma, por ausência de definição do seu trabalho. Uma ausência que só os futuros investigadores da língua conseguirão definir. As emoções empilham-se num amontoado aparente de desorganização que será tudo menos desorganizado. Compreender Lobo Antunes é tentar antes de mais nada conseguir penetrar no seu universo, saber traduzir a sua voz, como quem tenta reunir um molho de lenha numa praia para fazer uma fogueira para a noite. Parecendo uma tarefa impossível de realizar à partida, o certo é que com esforço e dedicação acaba-se sempre por conseguir.
Ao Mestre só tenho a agradecer os inúmeros momentos de bem estar e tranquilidade que os seus livros me deram, as gargalhadas e as lágrimas. Principalmente agradecer-lhe ter-me ensinado a escrever. A ajudar-me a entender os pássaros, a empurrar um baloiço vazio no Jardim zoológico a meio da noite, a passear uma tia mongolóide numa feira em Monsaraz com um feirante a querer comprar-ma, a jogar à bisca lambida com o Camões em cima do caixão do pai dele num barco a caminho de Lisboa em plena descolonização. E tantas, tantas outras imagens que, além de me sinalizarem enquanto marcos da existência, serviram para me estruturar melhor a minha personalidade. Se esta é a sua despedida então adeus, Mestre. Se depender de mim, nunca partirás para fora da tua relevância.
Artur
2 comentários:
Belo texto, Artur. Como sabes também eu tenho com ALA uma postura de deferência que não tem limites. Ele é O escritor do meu tempo de existência, ele é a referência que permanecerá. Já se despediu tantas vezes, que acredito não ser a última. Despedir-se da escrita seria despedir-se da vida, e estou em crer que Lobo Antunes é imortal. Abraço.
Obrigado Carlos. Ele éuma espécie de tio mais velho da nossa geração. Tudo o que de válido fizermos em termos literários tem obrigatoriamente o punho da influência dele. Ao contrário, o Velho era um tipo do tempo dele, com o seu universo próprio. Levou atrás uma legião de fãs mas porque ganhou o Nobel. A originalidade dele era a imaginação. A do Mestre é a de ser outro Joyce, um escritor do inconsciente. Thoughtstream. O gajo com quem íamos à bola em putos. Gandabraço Carlos.
Artur
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