segunda-feira, 1 de outubro de 2012

1984






"Estamos perante uma combinação fatal de poder e ignorância" - M.M. Carrilho


Já não vivemos em democracia; vivemos em merdocracia. Esta orientação política resulta de uma combinação fatal entre os resquícios de estalinismo, a agitação de alguns que se aproveitam para rapinar ao Estado e ao povo o pouco que resta da sua actividade de décadas a fazerem negócios chorudos para eles e ruinosos para o povo e uma generalizada e genuína estupidez (relembrando a definição de estupidez elaborada por Roland Barthes "A estupidez é a euforia do lugar"). Em relação ao primeiro elementos (resquícios de estalinismo) basta que nos lembremos da requintada teoria do "engenheiro das almas" e de Zinoviev : o Partido Comunista da URRS constituía a vanguarda revolucionária, portadora do verdadeiro pensamento marxista e intérprete fiel das ideias de Lenine; os planos quinquenais eram fabulosos e, se não resultavam, era porque o povo era estúpido, ignorante e não-colaborante. Para os Professores Doutores Passos Coelho, Relvas, Gaspar, Moedas e Borges, o povo, os empresários, os economistas, os sindicalistas, a oposição e, de um modo geral, a Humanidade, não só é estúpida, ignorante e não-colaborante como, mal dos males, não os merece. A novilíngua (George Orwell "1984") dos merdocratas enaltece o "empreendedorismo", a "inovação", o "mérito" e outras baboseiras e parvoíces do género, não se revelando o povo português capaz de compreender o brilhantismo destes fabulosos técnicos, destes seres de eleição, destes faróis da Humanidade e muito menos de lhes prestar o serviço de ser resignado, cabisbaixo e colaborante, à imagem do condenado à forca que enfia no seu próprio pescoço a corda que o há-de estrangular. Tal como Estaline, os merdocratas de agora precisavam do "homem novo", um ser puro e desenhado a régua e esquadro, capaz de corporizar as folhas Excel do Professor Doutor Vítor Gaspar, as teorias económicas do Professor Doutor Moedas, as lições académicas do Professor Doutor António Borges e a meritocracia do Professor Doutor Miguel Relvas. Estes infelizes Professores Doutores tiveram a infelicidade de cair na "piolheira" mais desbragada e incompetente, restando-lhes lamentarem-se diariamente de tão triste sina e de dizerem "sottovoce" "Como Portugal seria maravilhoso sem os portugueses...". Quanto ao elemento "rapina" deste merdocracia, ele é tão evidente que passa sem comentário. Aliás, convirá apenas acrescentar uma pequena nota marginal: estes Professores Doutores perceberam que em democracia não se pode governar desmantelando o Estado Social, desvalorizando e retirando dignidade ao trabalho e atirando os direitos sociais e políticos para uma espécie de caixote do lixo da História. Perante tal impossibilidade, restava-lhes, como é óbvio, transformar a democracia em merdocracia.
Ao genial Professor Doutor Pedro Passos Coelho deu-lhe agora para citar Camões (podia ser pior, e começar a citar frases da obra "A Fenomenologia do Ser", obra de Jean-Paul Sartre que assevera ter lido na juventude, com o pequeno senão de Sartre nunca ter escrito tal obra...), apesar de Camões, que se saiba, nunca lhe ter feito mal nenhum e ignorar olimpicamente a existência deste e dos outros Professores Doutores.Pois bem, dizia eu o Prof. Dr. PPC resolveu atirar-nos com a citação do Canto V "Sopram ventos favoráveis", etc. chamando o vate ao enaltecimento das suas fabulosas políticas, coisa que o poeta vomitaria se soubesse que os seus versos são tão abusiva e estupidamente utilizados. Um dia, quando estiver a gozar a sua reforma dourada num cargo de CEO de uma grande empresa, talvez o Prof. Dr. possar dar uma olhada num texto fundamental de Walter Benjamin que comenta o quadro de Paul Klee que se pode observar lá em cima. Esse quadro chama-se "Angelus Novus" e foi oferecido por Paul Klee a Benjamin que, a partir desse quadro, constrói uma imagem da História, caracterizada do seguinte modo (cito de memória) : Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa aos nossos pés. Ele (o anjo) gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se nas suas asas com tanta força que ele não pode fechá-las. Essa tempestade impele-o irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce. Serão estes os "ventos favoráveis" que o Professor Doutor Passos Coelhos vislumbra ?

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