Tive a sorte de crescer num
bairro fantástico e de ter conhecido os melhores amigos do mundo, os mesmos que
continuo a ter. Os nossos avós tinham sido jovens no tempo da República,
contemporâneos da geração do Fernando Pessoa, dos surrealistas, anarquistas,
sufocados no auge da existência por um manto negro de proibições, prisões, fome
e “padrecas”. Eram republicanos, aristocratas falidos, operários
especializados. Derrotados pelos ventos da História, nunca se renderam nem
dobraram as costas à ditadura. Falavam de coisas que não se viam na televisão,
encaravam as vicissitudes da vida com um olhar fixo, as velhas diziam palavrões
quando se irritavam, os velhos não tinham pejo nenhum em andar ao soco. Os
nossos pais eram mais amedrontados, nunca tinham vivido em liberdade mas também
não se resignavam. Resistiam, falavam de política, ouviam o Rock’ n Roll que
chegava em discos de vinil com dois anos de atraso, foram presos políticos, fizeram
a guerra, desertaram, foram pioneiros em relação ao amor livre, às drogas, à
nova postura sussurrada pelos ventos do Woodstock e do Maio de 68. Éramos
crianças livres debaixo de um manto repressivo. Com o 25 de Abril, pouco tempo
depois da “FESTA”, as coisas voltaram à normalização. Mas no bairro, não. Fomos
adolescentes, ouvíamos “Punk Rock” e “New Wave”, e desdenhávamos dos parolos
que se iam inscrevendo nas juventudes partidárias. Os que agora se chamam
“jotinhas” e fazem questão de acabar com o que resta deste país. Experimentámos
a vida para além de todos os limites, abrindo uma guerra na qual muitos não
sobreviveram. Acidentes de carro, Sida e drogas cruzaram-se no nosso caminho e
eliminaram mais de metade de uma geração. Continuámos a viver livres sob um
manto negro de facções partidárias apostadas em controlar todas as dimensões da
vida.
E, ao longo de todas estas fases
urbanas de crescimento, além de um amor quase obcecado pela liberdade, existiu
sempre um espírito comunitário de solidariedade e respeito entre todos. Um
espírito herdado das anteriores gerações. Era comum cumprimentarmo-nos na rua,
mesmo não conhecendo formalmente o outro. Era comum acompanhar os velhos que
viviam sozinhos, desenrascar o vizinho, emprestar isto ou aquilo, passear o cão
que não era nosso, ficar com os filhos dos outros à noite.
No fantástico bairro de Campo de
Ourique, as árvores cresceram abanadas pelos ventos da Liberdade, regadas pelas
lágrimas das vítimas da tirania, as ruas foram rasgadas pela firmeza da
resistência ao infortúnio, decoradas pela teimosia de viver e pela ganância de
roubar à vida tudo o que pudesse ser roubado, compensando o muito que ela nos
rouba desde o primeiro dia. Uma geração após outra assumia pagar o preço de ser
livre, deixando nas memórias, nas pequenas histórias urbanas, o legado de quem
não se resigna, de quem não se vende nem se rende. E não trocava esta
experiência de vida, esta existência privilegiada, por todo o poder do mundo…
Artur
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