"Considerai o seguinte, vós, orgulhosos homens de acção: não passais de instrumentos inconscientes dos homens de pensamento, que no seu humilde sossego com frequência traçam os vossos planos de acção mais completos" Heinrich Heine
O aviso que Heine deixa aos homens de acção do seu tempo, referindo-se ao rescaldo da Revolução Francesa e do Império napoleónico, foi objecto de uma magnífica paráfrase de Isaiah Berlin que, em 1958, se lia assim:
"´Há mais de cem anos, Heine, o poeta alemão, aconselhou os franceses a não substimarem o poder das ideias : os conceitos filosóficos, criados no sossego de um gabinete de professor, poderiam destruir uma civilização" (Two Concepts of Liberty, 1958)
Se Heine tinha em mente a influência dos filósofos das Luzes nos transcendentes acontecimentos ocorridos entre 1789 e 1793, prolongados por Napoleão Bonaparte até 1814, Berlin quer chamar a atenção para a importância da história intelectual e do "poder das ideias" sobre os acontecimentos políticos e sociais de cada época. Esta influência tem uma génese e uma história e um dos fenómenos intelectuais que considero mais importantes é o da busca universal por parte dos filósofos de certezas absolutas, de respostas que não fosse possível pôr em causa, de uma segurança intelectual total. Esta busca - quase se diria faústica - constitui uma assombrosa etapa da história das ideias e um dos fundamentos das reflexões de Heine e de Berlin, como adiante procurarei demonstrar. Começo por Karl Marx e o modo como o estudo dos seus conceitos conduz à investigação dos seus predecessores e, particularmente dos filósofos franceses setecentistas - adversários letais do dogmatismo, do tradicionalismo, da religião, da superstição, da igonrância e, de uma forma geral, de todas as formas de opressão do homem. É assim que passamos a admirar a ciclópica tarefa que os autores da "Encylopédie" levaram a cabo e o objectivo supremo que para si mesmos fixaram: libertar os homens das trevas - clericais, metafísicas, políticas e outras. Com algum distanciamento crítico, compreendi que as consequências, tanto de ordem lógica como social desse esforço, desembocaram no dogmatismo marxista e dos seguidores de Marx. Entre filósofos do Iluminismo e marxistas, o traço de união pode ser definido deste modo: pensavam sinceramente terem encontrado a vida que levava à solução de todos os problemas que, desde o começo, haviam atormentado e degradado a Humanidade; uma vez conjugadas todas as respostas certas às questões morais, sociais e políticas mais profundas que ocupam (ou deveriam ocupar os homens), o resultado constituiria a solução final de todos os problemas da existência. No entanto, os seres humanos podem ser demasiado estúpidos, de tal modo infelizes, tão enormemente oprimidos e pauperizados que não logrem alcançar as respostas. Ou, ainda, que essas respostas sejam demasiado difíceis, os meios insuficientes, a descoberta das técnicas demasiado complicada. Da ideia inicial - encontrados os modelos, as soluções viriam natural ou penosamente a serem encontradas - ao Terror revolucionário vai apenas um pequeno passo, embora a ameaça de destruição da civilização se mostre excessiva. É melhor o excesso revolucionário, mesmo com tudo o que comporta de trágico, de sanguinário e de totalitário, que as meias-tintas da interpretação estética e moral da vida.
Hoje, os filósofos no sossego humilde dos seus gabinetes foram substituídos por uma prole larvar de tecnocratas, burocratas, eurocratas e afins, constituíndo uma nova casta de sacerdotes, de ungidos, de alucinados místicos, capazes de separarem as ovelhas meritórias dos bodes indignos de serem salvos. A estes moralistas redentores e messiânicos - a quem em tempos chamei "devotos do onanismo" - nos seus gabinetes estofados a bons couros e ar condicionado, basta-lhes uma folha Excel para destruírem civilizações, modos de vida, estruturas sociais. Por isso, se tornam cada vez mais prementes velhas questões que não obtêm resposta: "Até que ponto sou controlado por esta gente ?" ("Quem me controla ?") "Quem controla aqueles que me controlam ?", "Quem determina as minhas acções,a minha vida ?" "Sou eu que as determino, livremente, seja qual for a minha escolha ?" "Ou estou sob controlo de outra fonte de controlo ?" "Estou submetido à disciplina de um sistema jurídico, da ordem capitalista, de um proprietário de escravos, do governo (democrático, autoritário, oligárquico ), da seita dos loucos-fanáticos nos seus gabinetes manipulando modelos econométricos ? Em que sentido sou senhor do meu destino ? Quem são os que ocupam o meu lugar em vez de mim, que poder detêm ?"
Mesmo depois do último 15 de Setembro, esta gente persiste no esforço de nos fazer engolir pela goela abaixo a tese de que a verdadeira liberdade (a minha liberdade enquanto indíviduo e a liberdade da sociedade enquanto grupo) consiste na obediência sem reservas a essas autoridades, aos sábios, aos que conhecem a verdade, à elite dos esclarecidos, ou ainda, a minha obediência é ilimitadamente devida aos que compreendem as forças que forjam e determinam os destinos do homem.
Mas, se perguntar "o que significa o futuro ?", saberão eles dar a resposta ?
1 comentário:
Arnaldo:
Continua a ser um grande prazer (embora raro)ler as coisas que vais escrevinhando. Muito bem pensado, muito bem estruturado, claro e límpido, embora convide a várias leituras nas entrelinhas...
Um grande abraço
Nuno Simas
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