terça-feira, 5 de junho de 2012

DECLARAÇÃO DE INTERESSES

1. Gosto das grandes rupturas, não das rupturazinhas, das meias-tintas, da zona cinzenta entre o sim e o não. Gosto das rupturas tipo "pontes dinamitadas" e do seu carácter definitivo: nem eu passo para o outro lado, nem os que estão do outro lado passam para este. Antes de ser um cineasta exasperado e exasperante, Jean Rouch foi engenheiro de pontes e fez parte de uma equipa militar que, no período da II Guerra Mundial, tinha como missão demolir pontes a fim de atrasar o avanço do exército alemão. Ouçamos o que ele diz a esse propósito: "E, por um estranho paradozo, tínhamos iniciado a nossa vida de engenharia civil fazendo saltar as pontes mais prestigiadas da França, a de Château-Thierry que tinha conhecido Jean de La Fontaine, a ponte-canal de Briare, uma vala de aço e de água passando por cima do Loire, insólita como um quadro de Magritte. Dito de outro modo, nunca uma geração de jovens foi tão rica, já que não tínhamos nada, absolutamente mais nada a perder..." (Jean Rouch, "Le Renard Fou et le Maître Pâle".

2. Fui um bandalho, sou agora um renascido. Guardadas as devidas distâncias, sou o S. Paulo dos tempos modernos. O outro, o dos tempos antigos era, como se sabe, um feroz perseguidor de cristãos, dando pelo nome de Saulo de Tarso. Um dia, na estrada de Damasco, viu um raio de luz e uma voz que perguntava : "Paulo, Paulo, porque me persegues ?". Esse fenómeno, uma epifânia, transformou-o finalmente em S. Paulo, o fundador do Cristianismo. Pois bem, eu não vi Cristo, mas vi a Cristas - perdão, a Prof. Dra. Assunção Cristas - num sonho, vestida com um belíssimo manto azul e branco, ostentando uma maravilhosa auréola feita na China e iluminada pela EDP. A senhora ministra admoestava-me gravemente sobre as minhas faltas e os meus erros, longamente me apostrofando sobre a falácia em que assentam os meus erróneos juízos e as minhas pretensas ideias. E então, irmãos, vi a Luz ! E renasci, sem deixar de ser quem era na essência, tema a que voltarei mais adiante. E então, arrependi-me dos epítetos e adjectivos com que tenho mimoseado os srs. ministros, deputados da maioria, economistas e donos de supermercados. Arrepelei os cabelos, rasguei as vestes e cobri a cabeça de zinzas, lembrando-me das muitas vezes em que disse que os nossos governantes são incompetentes, mentirosos, vendidos, mercenários, negociantes e vendilhões. Nesse sentido, venho agora declarar que tudo isso eram patranhas, erros falácias contumazes, larachas, baboseiras, imbecilidades, deboche puro e simples. Mais declaro, sem nenhuma reserva mental, que tudo me foi inspirado por um demónio gozador e maléfico, negativista e gozador, fáustico, que me instilou o vírus do niilismo, do cepticismo e do solipsismo. Por isso, e por tudo o que adiante direi sobre a minha natureza, peço que me perdoem e não me processem. Os meus filhos precisam de um pai presente, e não de uma abstração que se visita na cadeia ao Domingo e a quem se levam maços de tabaco e limas dentro de bolos amorosamente confecionados pela extremosa esposa do condenado e mãe dos sobreditos infelizes. Ah, já agoara, também precisam dos parcos euros que levo para casa ao fim do mês.

3. Declaro, por minha honra, que sou um imbecil e um medíocre inimputável. Nesse sentido, devo esclarecer Vossas Reverências (ministros, deputados da maioria, economistas e outras sumidades) que, embora a cólera dos imbecis encha o Mundo, a ideia de redenção os atormenta "in extremis", já que essa ideia constitui a essência da esperança humana, o último reduto antes do desespero total. Embora, como já disse, vivamos atormentados pela ideia de redenção, nós os imbecis, negaremos tal coisa, se interrogados. REDENÇÃO ? Nunca ouvimos falar. Na verdade, nós os imbecis e os medíocres, não dispomos de nenhum instrumento mental que nos permita entrar em nós mesmos. Só conseguimos explorar superficialmente o nosso ser. Mas atenção, srs. ministros e ministras e demais poderosos deste Mundo, não vos atrveis a tocar num só dos nossos cabelos, escreveu o Anjo no portão de entrada dos tempos modernos. Não toqueis num só dos nossos cabelos. A vossa vingança majestosa é, por assim dizer, metafísica : Basta pensarem que a ideia de grandeza nunca passou pela cabeça dos imbecis e medíocres como eu próprio, visto que a grandeza é uma ultrapassagem perpétua e os medíocres não dispõem de nenhuma imagem mental que lhes permita avaliarem o seu ímpeto irresistível : Estamos à porta da História (mas do lado de fora) e na fronteira do Paraíso (mas sem passaporte). Estamos para além da inocência , mas aquém da sabedoria. Em suma, não existimos, estamos aí mas não somos, falamos como Cassandra uma língua estranha e incompreensível. Nem sequer somos inquietantes, apenas ligeiramente  inquietos na nossa vacuidade. Portanto, é lícito acreditar que certas naturezas, como a minha, se defendem institivamente da piedade mediante uma desconfiança justa de si mesma, da brutalidade das suas reações. Acreditamos, meus caros senhores, na ignóbil mistura da ignorância com as ideias feitas e os lugares comuns, o que nos facilita a existência, eximindo-nos da única tarefa para a qual estamos completamente incapacitados: pensar.

4. Na primeira página de "O Mito de Sísifo", Albert Camus observa que Galileu, na posse da mais importante verdade científica do seu tempo, dela abjurou com a maior facilidade no momento em que a defesa dessa verdade colocava a sua vida em risco. Portanto, nenhuma verdade vale a nossa vida, ou melhor, nenhuma verdade exterior a essa mesma vida. Se 2 e 2 são 4 e se a Terra gira em volta do Sol ou se, pelo contrário, é o Sol que gira em volta da Terra, tais verdades são-me profundamente indiferentes; a única verdade que me deve interessar é a que está contida no sentido da minha vida, ou na completa ausência desse sentido. Por outras palavras, a única coisa que me interessa é a verdade do Mundo, que consiste em não ter nenhuma.
Por outro lado, a vossa dignidade ou indignidade, a vossa honra ou a falta dela, são-me indiferentes, não me interessam absolutamente nada. Quanto a mim próprio, não posso dispensar o meu desprezo nem o meu ódio, não sou suficientemente resignado para me permitir dispensar esses pequenos luxos. Quanto à minha honra, também não a posso dispensar : Como dizia Albert Camus "não sou suficientemente grande para  poder dispensar a minha honra".
E agora, calo-me.

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