Cheguei ao fim. Finalmente terminei um trabalho longo de anos, um labirinto repleto de alçapões e fundos falsos, paredes duplas e muita informação. Acabei o meu último romance e o estado de espírito imediato é de euforia e imenso vazio. Sensações que nada têm de original, antes já foram repetidas centenas de vezes por centenas de autores antes de mim. Caguei. Neste momento está para inventar aquilo que me conseguirá chatear durante alguns dias. Acabada a última página dá-se o nascimento e a imediata partida para a vida. Agora já não é comigo, é com ele. Agora será ele a tentar convencer editores, a cativar leitores, a cavar o seu próprio espaço no mundo. Em mim ficaram as noites, os personagens e os espaços que me acompanharam durante cerca de mais de dez anos. As memórias do processo em construção, desta vez muito semelhante a um filme. Por se tratar de uma reconstituição histórica foi preciso escolher e montar os cenários, escolher locais de filmagem, contratar actores e figurantes, etc.
Vários personagens, muitos personagens, também não ajudam a despachar a narrativa. Uma vez inventados (invocados?) querem todos contar a sua história, falam ao mesmo tempo numa algazarra que não deixa espaço para pensar. No fim, vai ser deles de quem eu vou sentir mais falta. Muitas vezes o romance não avançava e eu não conseguia perceber porquê. Como se o produtor de repente tivesse parado o financiamento. A equipa ter que ir em desespero à procura de outra fonte. Mas não. Percebi tempos depois. A minha falta de imaginação ou inércia criativa, a minha falta de vontade de continuar tinha apenas uma razão de ser. Habituei-me à companhia destas criaturas, da sua indisciplina coloquial, apaixonei-me por elas. Não queria pensar que um dia teria que me despedir deles. São seres comuns apanhados numa esquina da História, que tentaram viver, mais nada. Foram vítimas e carrascos ao mesmo tempo. Foram inocentes e culpados. E foram, acima de tudo, seres extraordinários que passaram pelas margens da sociedade com a alegria de quem quer ser sempre livre, fiel a si próprio.
Fui-me despedindo deles, um a um. Espero sinceramente ter conseguido traduzir a maior parte das suas histórias, já que não estão inscritas em nenhum compêndio de História. É para isso que servem os romances. Para contar histórias extraordinárias acerca de pessoas comuns. Neste caso em Lisboa nos anos 20, na euforia da República, poucos anos antes de se instalar a ditadura.
Estou satisfeito e aliviado. Não me apetece pensar em mais nada por agora. Para a semana começará a fase dos registos e da solicitação aos editores. Hoje janto com estes seres fantásticos que me acompanharam durante anos. Despeço-me deles com a certeza de que nos voltaremos a ver. Com a certeza de que um dia serei um deles. Um ser suspenso, pronto a ir ter com o narrador que me quiser ouvir. A tentar falar mais alto que os outros ou a querer contar a minha história com todos os detalhes. Até lá, vou continuar deste lado a fazer aquilo que mais gosto de fazer, que é contar histórias. Hoje acabei um romance, amanhã posso morrer em paz.
Artur
1 comentário:
Grande texto! Já se sabe em que editora sairá?
Enviar um comentário