terça-feira, 20 de março de 2012

INQUIETUDE ABSOLUTA


FLORBELA

Vicente Alves do Ó

Portugal, 2012


Uma existência meteórica e repleta de acontecimentos extraordinariamente profundos a todos os níveis. Uma carreira literária que, não só marca definitivamente a sua época como deixa um rasto de influência, uma porta aberta ao trabalho das gerações que se lhe seguem. Uma mulher apaixonada até ao último suspiro, que nunca desistiu de procurar o Amor, dentro de si ou na vida à sua volta. Uma alentejana que fez da paixão a substância e que tudo sacrificou por ela…mesmo a sua própria existência.
Por todas as razões apresentadas, e por muitas mais de que não me consegui lembrar, era urgente uma referência a Florbela Espanca (1894 – 1930) no cinema português. Ela apareceu finalmente pela mão de Vicente Alves do Ó, essencialmente inspirado na correspondência da poetisa. Diga-se já, antes de mais nada, que filmar a vida de um escritor ou de um poeta está longe de ser uma tarefa fácil. A linguagem literária pouco ou nada tem a ver com a linguagem visual, e esse é o grande desafio do argumentista/cineasta: fazer a tradução das palavras, do discurso literário para a evidência das imagens. E FLORBELA não é definitivamente um filme fácil. Nem todos se rendem de imediato ao correr das imagens. E principalmente por se tratar de um filme que paira sobre um estado de espírito, deixando a narrativa correr de forma irregular. A “história” é um elemento que entra e sai do filme mas que não está lá de forma efectiva. Trata-se de uma espécie de complemento que reforça e ajuda a transcrever ou a traduzir o discurso emocional.
Voltando ao concreto, vamos encontrar a poetisa numa fase da sua vida em que se separa do seu segundo marido e se aproxima do terceiro. De imediato ficamos com o quadro completo, no que à estabilidade emocional diz respeito. Florbela assume o seu terceiro casamento em conflito com a família directa, que não lhe perdoa os dois divórcios consecutivos. Mas a normalidade não lhe serve em nenhuma circunstância. Antes a afasta da capacidade criativa, que se encolhe ao ritmo da rotina e de um quotidiano previsível. A licença do irmão em Lisboa serve-lhe de desculpa para sair de Matosinhos e de gatilho libertador. Com Apeles, piloto da aviação naval, Florbela volta ao centro da vida, às festas, aos amigos que anseiam por novos sonetos, ao excesso, ao devorar da vida.
Nessa vontade absoluta de provar todos os sabores da vida, tudo se manifesta no seu sinal mais elevado, seja bom ou mau. Na poesia reflecte-se a feminilidade e o erotismo envolventes, a paixão, o desassossego permanente. Mas, por outro lado, a vida tumultuosa e excessiva conduz também à insatisfação permanente, a um quadro depressivo profundo. A infância e os tempos felizes que passou com o irmão, não voltam. E mesmo esse tempo de aparente felicidade fica manchado pela situação familiar irregular em que nasceu. Florbela e o seu irmão (três anos mais novo) são filhos do seu pai e de uma mulher de classe humilde (Antónia da Conceição Lobo). A mulher de João Maria Espanca, Maria do Carmo Toscano, não podia ter filhos. João Maria registou os filhos como ilegítimos de pai incógnito. Só viria a reconhecer Florbela como sua filha em cartório notarial, dezoito anos após a sua morte. Com este ponto de partida a vida de Florbela tem todos os ingredientes necessários para uma terrível instabilidade emocional. Uma instabilidade que, ao se acrescentar as diversas tragédias (aborto espontâneo, insuficiência pulmonar, três casamentos, a morte do irmão), lhe vão inscrevendo um quadro depressivo cada vez mais dramático que culminará no dia do seu 36º aniversário, à terceira tentativa de suicídio.
O filme paira, como dissemos, sobre um estado de espírito, uma época específica da vida da poetisa. Que parte do fim do seu segundo casamento e termina com o acidente fatal do irmão. Não se centra, a não ser acidentalmente, na sua obra. Para entrar no filme é necessário (exige-se?) alguma cumplicidade prévia, isto é, estar minimamente familiarizado com a vida e a obra da poetisa. Uma opção corajosa que, quanto a mim, correu bem.
Por fim, FLORBELA é um filme de actores, assente numa trilogia fortíssima de expressão (Dalila Carmo, Ivo Canelas e Albano Jerónimo) que resulta em pleno. Qualquer um dos personagens sabe gerir muito bem os espaços sem palavras, trabalhando a expressão e a postura de uma forma não só cúmplice como absoluta.
Veja-se, a este respeito, a cena das fotografias ao pé do hidroavião, entre os dois irmãos.
Um filme a princípio estranho, escondido nos seus próprios segredos, que se deixa ir revelando ao sabor das emoções e estados de alma. A narrativa aparece apenas de vez em quando, para nos guiar por esses caminhos.

Artur

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