sexta-feira, 2 de março de 2012

O SONHO SEGUNDO SCORSESE


A INVENÇÃO DE HUGO

Martin Scorsese

EUA, 2011


Através de um plano sequência aéreo sobre os céus de Paris do princípio do séc. XX, vamos dar a uma pequena janela que é afinal um espaço aberto na estrutura de um grande relógio numa estação ferroviária. Atrás dessa janela, um jovem vai observando a vida na grande estação. O policia, acompanhado da estrutura metálica e guinchadora que lhe segura a perna, mais o doberman especializado em encontrar órfãos e vagabundos em geral, a rapariga das flores, alvo desajeitado do seu coração, o homem do quiosque dos jornais e a senhora do café com o seu “lulu” idiota que o mantém à distância, e por fim, o sr. Méliès, dono da loja de brinquedos. Do lado de dentro do relógio, ou do tempo, está Hugo, um órfão que habita clandestinamente os interiores da estação e que, substituindo um tio desaparecido, mantém a estrutura interna dos relógios em funcionamento. O seu maior sonho no entanto, é conseguir pôr em funcionamento um autómato, única herança do pai, tendo para tal que roubar artigos e peças da loja do sr. Méliès.
Adaptado do livro “A Invenção de Hugo Cabret”, escrito e ilustrado por Brian Selznick (2007), o filme realizado por Scorsese marca a estreia do realizador no formato 3D. Um trabalho seguro, muito bem montado, onde a realidade e o sonho se cruzam frequentemente, como anónimos cidadãos numa estação de caminho de ferro. Scorsese regressa ao essencial do cinema, uma reconstrução de um mundo, um convite ao sonho, um percurso agradável na mais nobre dimensão da Sétima Arte. A capacidade de utilização da realidade para o fabrico da fantasia, da realidade cinematográfica enquanto unidade independente. E, acima de tudo, uma homenagem incontornável a uma das mais importantes referências dos primórdios do Cinema, o homem que inventou praticamente tudo, George Méliès.
(George Méliès)

George Méliès (1861 – 1938), passagem obrigatória de qualquer manual básico acerca da História do Cinema, inventa praticamente tudo o que era possível inventar no seu tempo. Desde ser o primeiro a conceber filmes de enredo, até utilizar a exposição múltipla de negativos, passando pela coloração de fotogramas, primeiro a usar o “storyboard” como instrumento de trabalho, a elaborar “sketches”, Méliès deixou um contributo impressionante que as novas gerações de cineastas e teóricos de cinema souberam aproveitar e valorizar nas suas actividades. Proprietário de um teatro em Paris onde trabalhava como ilusionista, Méliès tem o seu primeiro contacto com as imagens em movimento ao assistir a uma sessão dos irmãos Lumiére numa feira. A partir desse momento, o seu fascínio e dedicação pela nova arte vai determinar todo o resto da sua existência. Tenta comprar uma das câmaras dos irmãos Lumiére por dez mil francos, mas sem êxito. Em alternativa vai a Londres onde adquire vários filmes e um Animatógrafo (um projector inventado por Robert W. Paul), que era essencialmente uma cópia do Kinetógrafo de Thomas Edison. A partir de Abril de 1896, o teatro Robert- Houdin passava a exibir filmes diariamente. Méliès utiliza o Animatógrafo como referência para construir uma câmara de filmar com a ajuda dos técnicos Korsten e Reulos. Em Maio de 1896, começava a rodar os seus primeiros filmes, uma actividade intensa que, até 1913 contará com mais de 500 títulos. No início os filmes de Méliès são apenas repetições do que já existia e, essencialmente havia sido feito pelos irmãos Lumiére, ou seja reproduções do quotidiano, como a saída dos operários da fábrica ou a chegada de um comboio a uma estação (sessão recriada no filme de Scorsese). Em 1897 com o evoluir da tecnologia, surgem melhores e mais sofisticados modelos de câmaras produzidos pela Gaumont, Lumiére e Pathé. Méliès abandona o seu protótipo e adquire as novas tecnologias. Assim que começa a sua actividade, inicia também a construção dos seus próprios estúdios em Montreuil , uma propriedade sua nos arredores de Paris. Méliès vai agora passar os próximos anos entre os espectáculos e as exibições cinematográficas no teatro e a rodagem dos filmes no seu estúdio.
(o estúdio de Méliès, todo em vidro para melhor aproveitamento da luz solar)
Uma actividade alucinante onde aborda praticamente todos os géneros possíveis na época ao mesmo tempo que desenvolve uma série de técnicas para “rentabilizar” as possibilidades expressivas da nova arte. E é neste contexto que se considera Georges Méliès o pai dos efeitos especiais. Um estado de graça que começará a entrar em declínio por volta de 1907. Os filmes começam a não provocar no público o impacto de outros tempos, essencialmente pela repetição de fórmulas antigas e pela falta de adaptação às novas tendências da produção, cada vez mais industrializada. As dívidas acumulam-se. O monopólio de Edison, criador da Motion Pictures Patents Company, a que os estúdios de Méliès aderiram, revela-se implacável. A Star Film Company adere ao conglomerado e fica obrigada a produzir mil pés de película por semana, o que deu cerca de 68 filmes no espaço de um ano. Em 1909 Méliès deixa de fazer filmes e cai no anonimato aprofundado pelos acontecimentos da época como a Grande Guerra, as novas tecnologias, as novas exigências do público. No entanto, a partir do início dos anos 20, estudiosos do fenómeno fílmico e novos realizadores voltam a procurá-lo e a reconsiderar a qualidade da sua obra. Em 1931, Méliès recebe a “Legião de Honra”, e alguns anos depois torna-se conservador da “Cinema Sociétè de Films”, uma pré cinemateca francesa onde se conseguiram guardar ainda perto de uma centena de filmes seus, recuperados e restaurados. Méliès vem a morrer de cancro em 1938.
Muitos dos aspectos biográficos de Méliès estão referidos no filme, sendo este essencialmente passado na fase final em que o cineasta volta a ser “recuperado” e reconhecido pelos seus pares. Os planos do autómato encontrados na mão de Hugo servem de rastilho para o resto. De facto, Méliès inventou vários autómatos nas suas produções.
Scorsese salta de forma elegante a parte do monopólio e da pressão industrial americana de Edison , neste caso da MPPC, para se concentrar na parte positiva do contributo de um dos maiores e mais importantes pioneiros no que ao cinema diz respeito. Homenageando Méliès, homenageia o Cinema, a sua capacidade de reinventar, de criar a sua própria expressão num espaço onde convive sonho, fantasia e realidade. Destaque para, além do plano-sequência inicial já referido, para o pesadelo de Hugo quando se vê nos trilhos da linha férrea e com um comboio que corre na sua direcção, que depois acaba por rasgar literalmente a estação. A sequência dos sonhos dessa noite que passa pelo desaparecimento do relógio de bolso pendurado num prego da sua habitação improvisada. A ténue fronteira entre mundos, a capacidade de conseguir encontrar um propósito nessa terra de ninguém, a interpenetração da realidade e da fantasia, tudo isso é obra do Cinema. Um mundo com lógica própria, autónomo de organização e de expressão, um mundo que utiliza a observação, a realidade e a imaginação para construir novos mundos, novas possibilidades. Assim seja.

Artur