Julgo que já falei com ele três ou quatro vezes. Normalmente aparecia-me à porta por alturas do Natal. Despejava uma lengalenga onde incluía uma breve introdução à instituição que representava, o que fazia e, obviamente, terminava apelando à “contribuiçãozinha”, tão necessária à continuidade do projecto. Por alguma razão, nunca consegui dizer-lhe que não. Nunca consegui mandá-lo embora de mãos a abanar. Neste caso concreto, trata-se de uma instituição de solidariedade que dá apoio, acolhimento e solidariedade aos sem abrigo, doentes com HIV, marginalizados em geral. Hoje o meu interlocutor voltou-me a visitar. Esteve internado com um problema grave no fígado. Assim que se sentiu minimamente restabelecido retomou a sua actividade de bater às portas em busca da solidariedade anónima para manter a instituição. O que mais admiro neste homem é a sua persistência, a sua vontade em se manter de pé quando tudo, ou quase tudo se organiza contra ele. Desde o azar até ao mundo em que vive, nada se presta a contrariar o seu estado de saúde, a sua magreza progressiva, a ausência quase absoluta de futuro, de esperança. Mas segue em frente com a dignidade de um príncipe. Vira para mim os olhos negros como que a dizer: “Estou no fundo e tenho muito pouco espaço para me levantar. E é precisamente esse bocado de espaço que eu tento construir todos os dias. E se quiseres podes-me enxotar, mandar trabalhar, insultar, ignorar, ou, em contrapartida, ajudar-me. Nada do que tu possas fazer me irá alterar. A minha cara será sempre a mesma. A minha atitude também. “
Julgo que já falei com ele três ou quatro vezes. A familiaridade do reconhecimento dá-me um conforto moderado, uma capacidade de aceitação inquestionável por toda a falta de razão na maior parte das dimensões da vida. Sempre que ele me bate à porta sinto-me na vontade (não na obrigação, nem na consciência, nem no impulso) de o ajudar. Entendo que ele merece ser ajudado, quanto mais não seja pela dignidade com que se arrasta, teimosamente vivo. Fixo-lhe o olhar também, como que a dizer: “ Não quero saber o que te aconteceu, não me interessa quem és. Podes estar a mentir, a falar a sério, podes não ter outra maneira de conseguir comer, podes ser um simples calão que nunca levou a vida a sério. Qualquer uma destas hipóteses é-me completamente indiferente. Nada que tu possas dizer me vai alterar. Ajudo-te, simplesmente.”
Julgo que já falei com aquele tipo três ou quatro vezes e nem sequer sei o nome dele. Nem quero saber…
Artur
2 comentários:
Se todos dessem menos importância aos nomes e mais às "almas" vestidas com pele de vontades e desejos... este mundo seria, com toda a certeza, um mundo melhor. Disto, eu quero saber!
*grande lição, Artur:)
Obrigado pelo teu comentário Clarice... e pela dedicação ilimitada a visitar este blog. Bjs
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