quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

BEM VINDOS AO INFERNO DA RAZÃO

"Com o que se pode destruir o erro daqueles que crêm modificar a vida e os costumes dos outros com boas palavras e más obras; esquecem que as mãos de Jacob persuadiram como o não fizeram as suas palavras, ainda que elas insinuassem o falso e estas o verdadeiro. O Filósofo diz a Nicómaco: "em todas as coisas que procedem das paixões e das acções, têm as palavras menos crédito que as obras". Uma voz gritava do céu ao pecador David: "Porque celebras a minha justiça ?" Como se dissesse: "enalteces em vão, pois és diferente do que enalteces". Conclusão: tem que estar perfeitamente ordenado aquele que deseja ordenar os outros"

Dante "Monarquia"

Estas palavras escritas há 698 anos serviram uma reflexão moral entre os dois poderes do mundo de então: o Sacro Império Romano e o Papado, e de defesa de um ideal de monarquia temporal, portanto sujeita às vicissitudes do tempo, mas, no seu sentido aristotélico, visando a felicidade e uma superior unidade orgânica na cidade dos homens, ou seja, subordinando a uma ordem natural as regras da razão cristã. Dizia eu, "escritas há 698 anos" poderiam ser mais actuais ? Somos hoje governados por uma gente que exibe uma moral pública que contradiz práticas não tão privadas como isso; uma gente inculta e analfabeta que nem percebe o paradoxo da contradição em que vive; uma seita de tal modo convicta das suas falácias e dos erros que constituem o seu modo de vida que nem conseguem compreender que determinados problemas se colocam e se resolvem numa esfera que nem imaginam: o universo do pensamento ético; uma gente de tal modo venal e hipócrita que dificilmente conseguem esconder aquilo que realmente os move.
Apareceram como regeneradores da sociedade portuguesa, grandes pedagogos que iriam reeducar o gastador, indisciplinado e preguiçoso povo português, o tal que vivia "acima das suas possibilidades. Castigadores e punitivos, ao serviço de interesses obscuros, multiplicam as clientelas e sentam à mangedoura do estado, sem pudor nem vergonha, amigos, colegas, apaniguados, capangas, padrinhos e afilhados, propagando "boas palavras e más obras".
Onde nos conduziram, então, as más obras desta gente ? A um clima de mal-estar em que sectores da sociedade são acicatados contra outros sectores dessa mesma sociedade, levando ao desmembramento da mesma e à perda total de coesão social; a uma descrença generalizada nas instituições e órgãos de poder (a começar pelo Presidente da República e a acabar na Justiça, passando pelo enorme desprestígio da Assembleia e dos partidos nela representados); a uma situação de desconforto e de patologia moral que se traduz na ideologia do "salve-se quem puder"; ao retorno do pensamento fatalista e da crença na inevitabilidade da nossa miséria material e moral; a uma selva de relatividade ética em que no topo da cadeia alimentar estão aqueles mesmos que legislama para si próprios, exceptuando-se dos sacrifícios que impõem aos outros. Em suma, ao absurdo, ao Inferno da razão (como dizia Sartre). Escrevia Dante : "tem que estar perfeitamente ordenado quem quiser ordenar os outros". Mas qual é a ordem - pressupondo racionalidade e capacidade de julgar criticamente - que orienta estes indivíduos ? Poderia dar exemplos práticos da sua desordenação: de cada um deles e do todo que formam, poderia espremer este abcesso que se apoderou do meu país até sair todo o pus, remexer nas feridas até trazer à tona os vermes e a gangrena que os mina e que os apodrece, apodrecendo-nos, exprimir todo o nojo que me inspiram, recorrendo a imagens e metáforas (que não merecem), poderia, enfim, apontar-lhes um dedo acusador se o decoro e os bons costumes me não refreassem. Forneço só um exemplo da sordidez que grassa: ontem mesmo os líderes paralamentares do CDS e do PSD (um tal magalhães e um montenegro que fuma-mas-não inala) apareceram a apresentar o projecto-lei de criminalização do enriquecimento ilícito. É coisa para deixar qualquer cristão de boca aberta: políticos e funcionários públicos são potenciais corruptos (em relação aos primeiros já ninguém duvidava), pelo que as penas a aplicar são mais graves do que as que se aplicam ao cidadão comum pelos mesmos crimes. Tal agravamento da punição, para além de tornar desiguais uns e outros perante a Lei, pressupõe que o enriquecimento ilícito de políticos e funcionários públicos causa mais dano que eventuais crimes praticados pelos cidadãos. Poder-se-ia discutir se, por exemplo, o tráfico de droga é mais gravoso do que receber quantias para aprovar o projectozinho na área de reserva, facilitar o neociozinho ou aprovar uma lei que favorece determinados grupos. Não é isso que está em causa. O que importa verdadeiramente é o grau do crime cometido e a facilidade com que é perpretado: o cidadão comum arrisca tudo, desde perder os seus bens até malhar com o esqueleto na cadeia. Ao político bastam-lhe uns apertos de mão, uns sorrisos, um bom advogado, um jantarzinho íntimo, um dobrar das cervicais e uns estremeções da cabecinha semelhantes aos daqueles cãezinhos que outrora ornavam a traseira dos carros, de linguinha de fora a sorrir alarvemente. Depois de uns anos a defraudar o povo que o legeu, a empobrecer o erário público e a arruinar o que resta do nosso pauperizado país,a recompensa vem sob a forma de uma reforma dourada ou, melhor ainda, de um cargo na adminsitração das empresas que favoreceram enquanto legisladores e traficantes. Esta é uma forma de enriquecimento ilícito a prazo, que não é punível por uma Lei que o não tipifica como crime, sendo essa a sua obrigação. A nossa história recente está repleta de casos destes, muito conhecidos, pelo que me dispenso de os nomear. Como sinal da presente decadência moral, apareceu a Dra. Teixeira da Cruz, ilustre Ministra da Justiça, babando ódio,a crimónia e furor justicialista, insinuar que todos aqueles que estão contra esta proposta de lei o fazem porque, certamente, terão algo a esconder ou algo a perder, vendo perigar a sua situação de corruptos e ilicitamente enriquecidos. Fica tudo dito, restando lembrar a citação de Dante em epígrafe: "enalteces em vão, pois que és diferente daquilo que enalteces". Existe alguém mais diferente e distante dos princípios que apregoa ? Finalmente, apetece-me citar o Padre António Vieira e o Sermão do Bom Ladrão:

"Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo. "

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