terça-feira, 26 de julho de 2011

O HOMEM E A CIDADE


(Foto de Sofia P. Coelho)
O homem atravessava a cidade como que desligado da realidade, dando ocasionalmente alguma atenção à condução. O rádio do carro há muito que se encerrara num ruído monocórdico indecifrável, intraduzível. Talvez por conhecer aquele caminho desde criança, talvez por o ter percorrido milhares de vezes de todas as maneiras e feitios, talvez porque ultimamente se andava a sentir um misto de cansado com desinteressado, alheio ao que o rodeava, o certo é que o caminho passava por ele sem que desse por isso. De uma ponta à outra da cidade com a maior parte do percurso ao longo do rio, conhecia histórias em todas as esquinas, episódios em todos os passeios, espaços marcados pela memória associados a acontecimentos importantes que foi lendo e registando no registo dos outros. Naquele dia, no entanto, tudo era enfado, tudo era cansativo de perder a atenção por um segundo que fosse. E aquela era, sempre tinha sido, a sua cidade, a amante urbana mais amada de uma vida espalhada por cidades em todo o mundo. A “cidade branca”, que tinha observado através da objectiva de Alain Tanner, entre o Cais do Sodré e uma pensão em Santos sobre a doca, num tempo em que as máquinas eram todas à base de película… Não havia dúvidas sobre Lisboa. Uma cidade extraordinária, aberta sobre o estuário, uma cidade milenar, entreposto de culturas, palco de revoluções, porta de entrada e saída do continente. A cidade mil vezes cantada, filmada, encenada, celebrada, vivida, amada, magnificada. Hoje era ela, e não era. Tal como ele, que era ele, mas não era. Olhavam-se com algum incómodo, homem e cidade, como amantes pacíficos em vias de se separar, embora sem recriminações. Terminado o encanto, a paixão, o cimento que os juntava cada vez menos entusiasmados a ceder, a cama a fazer comichão nas costas, a clássica entrada para o discurso…para as frases clássicas aplicáveis na ocasião.
Não era ódio nem desamor o que o homem sentia. Olhando para a cúpula de uma igreja numa colina a cidade respondeu-lhe num sorriso branco e benevolente. Ajudou-o a clarificar o que sentia. E quando a brisa suave do rio o refrescava do calor daquele dia de Verão, percebeu. Aquela cidade não lhe pertencia, nunca lhe tinha pertencido. Nem ele a ela. Estiveram juntos de forma voluntária enquanto se amaram, mas até o amor termina, tal como a vida. Não deixava de fumar por lhe continuar a dar prazer, percebendo perfeitamente as regras ditadas pelo médico na última consulta. Preferia pensar nesse acto como uma abreviação à condenação eminente. Acabaria mais cedo, sem rancor nem tristeza. Por isso começava a afastar-se da cidade. Aquela cidade que nunca lhe pertenceu, aquela existência de que nunca foi dono, aquele tempo que não era propriedade de ninguém. Uma passagem, seria a designação mais adequada. Um “durante” com traços de eternidade para tornar a coisa mais atractiva, mais real. Um “durante” que se sente como absoluto enquanto vibração, enquanto se afirma e solidifica. Depois, o abrandar para a porta da saída. Nada de especial, apenas o ciclo da vida em movimento.
O homem deitou a beata do cigarro pela janela antes de fazer uma curva em aceleração, e insultar outro automobilista. Nessa noite, observando o luar pela janela do quarto, teve tempo de contemplar a cidade mais uma vez. E de lhe dizer adeus…

Artur

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