quarta-feira, 6 de julho de 2011

O FOGO

A porta bate, fechando-se sozinha e, apesar de saber que é a corrente de ar que a empurra não deixo de me assustar, de ser atacado por um sobressalto momentâneo. Sei que é a corrente de ar no instante imediatamente a seguir ao de me assustar. Vejo a casa mergulhar no silêncio do fim do dia, tranquila, digna, atravessando o tempo num passo seguro e elegante. Lá fora o bêbado de sempre ensaia o seu fado para o fim-de-semana. O bêbado das noites de estudo da minha Faculdade, deste tempo, o bêbado que já morreu, enfim, o homem que cantava fora de horas. A poltrona exibe a silhueta de uma figura patriarcal há muito desaparecida, os livros vão-se apertando na estante enquanto testemunhos de tempos diferentes, como passageiros em carruagem do metro na hora de ponta, (“com licença…desculpe…dê-me só um jeito, saio na próxima”), um perfume perdido regista-se como recordação numa caixa esquecida com fotografias lá dentro. Tudo desaparece aos poucos, ficando para trás um rasto de memórias espalhadas pela casa que respira, caminha, bate as portas em sinal de afirmação. Vou buscar um livro à estante, deixo um CD na língua de plástico que recolhe rapidamente…talvez Wagner, talvez Mozart. Um piano começa a cantar, depois um violino, depois uma chinfrineira organizada e sinfónica enche o ar sem que ninguém dê por isso. Sento-me a ler na poltrona que desenha nas suas costas uma silhueta de outro homem. Talvez Malraux, a guerra está perdida e um jovem prematuramente envelhecido vai propor a fuga ao pai de um camarada entretanto morto. Ele recusa amavelmente. Abre as janelas para a brisa da noite e liga o gramofone. Ou Mozart ou Wagner, um deles. A algazarra da rua cala-se por uns instantes, o som das explosões envergonha-se mas continua a avançar. O homem não parte. Vai ficar ali à espera de ser devorado pelas forças do caos. Pacífico, neutro, indiferente.
O vento faz-se sentir mais frio quando as estrelas já começaram o seu turno de sinalizar os céus. Um grupo de jovens reúne-se em ensaio numa sala de um convento antigo. Trabalham uma peça medieval, uma cantiga de amigo, e no seu esforço exorcizam os gritos de vítimas torturadas agarrados às paredes. Torturados e executados, não pelo que fizeram, mas pelo que eram, pelo que tiveram o azar de ser quando nasceram. Um nome, um deus, uma cultura. Queimados vivos no Rossio ao Domingo para distracção da população lisboeta. As guitarras harmonizam o frio dos corredores do convento. A voz da cantora eleva-se à santidade, apaziguando o medo. Gritos colados aos azulejos há duzentos anos, almas perdidas que se vão acalmar esta noite e partir pela estrada sinalizada pelas estrelas. Na história perdida de Lisboa.
A porta bate outra vez quando o gelo já derreteu no copo de whisky e a caixa de musica se calou. A casa manda-me para a cama como uma mãe zelosa do descanso do seu filho. Arrumo as memórias à força desse estado intermédio que nada é a não ser sono, um estado de alma entre dois mundos, um mundo que não é. Uma vida que não sou, desenhada por memórias e insatisfação, saudades e paixões. Uma busca obsessiva pela harmonia nas terras do caos e da destruição. Uma satisfação interior ao perceber que também eu. Como tudo antes de mim e mais aquilo que virá, também eu. Mesmo as memórias vão partir um dia. A poltrona com uma silhueta de alguém, as fotografias, o perfume, os livros, a casa digna e elegante a atravessar o tempo. Quando nada as prender à memória de ninguém, também elas. As manhãs mal dormidas, as despedidas com lágrimas, a raiva da injustiça, o bom e o mau, tudo, também. E partirei como um jovem adolescente que atravessa o rio debruçado sobre a amurada de um barco, rumo ao Sul. Tudo é possível e tudo será novidade. O vento sorri na minha boca e o cheiro a mar estimula a imaginação. Partirei sonhador e esperançado, satisfeito por partir. À frente, tudo é possível, atrás as serpentes da destruição devoram-se entre si. Do outro lado do rio a vida continua, haverá amigos que me esperam para ajudar na ambientação. Os golfinhos ajudam a orientar o barco, mensageiros de boas notícias. E no entanto, tudo arde sem nexo lá atrás, tudo arde estupidamente. Parece que só lá estivemos para ser ardidos com o resto. Como se arder fosse a única maneira de embarcar e atravessar o rio.

Artur

5 comentários:

Clarice disse...

"Como se arder fosse a única maneira de embarcar e atravessar o rio. "... talvez, mas se não o fizermos devagar, corremos o risco de nos eternizar no fogo... de o levarmos no barco que atravessa o rio...arder de lembrança em lembrança... (lembrei-me agora de um pedacinho do Miguel Esteves Cardosso que lembra o Devagar...)

*ganda malha:)) de texto!

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Clarice.

elbett disse...

Maravilhoso! Deu para sentir o sal!
Bjos Artur!

Unknown disse...

Um rio maravilhoso que deu gosto atravessar Arthur, muito bonito mesmo.
ana a.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Elsa e alfa: Obrigado. Continuem a visitar-nos